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Peça Ruim e a Autonomia Nossa de Cada Dia
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Você sabe o que está vendo

Pierre Bourdieu em seu “Mercado de Bens Simbólicos” organizou muito claramente o que ele mesmo nomeou como uma Economia das Trocas Simbólicas que rege o sistema mercatorial nos campos artístico e intelectual.

Ele fala de uma partilha que começa a ser percebida no Romantismo com o clamor do artista pela liberdade criativa em relação à aristocracia – até então, a grande patrocinadora da produção artística (a Funarte do Modernismo).

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O artista romântico, ao negar sua clientela aristocrática, nega também o caráter mercadológico da obra. Daí que passamos a crer, como em Deus, numa completa oposição entre o estatuto da arte enquanto simples mercadoria versus sua singularidade de condição intelectual e artística.

Mas este contexto ideológico oferece condições favorabilíssimas ao surgimento de “teorias puras da arte” ou seja, de sistemas ideológicos que não levam em conta o contexto de surgimento da própria teoria antes de considerá-la válida.

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Mefisto a la Setimo Selo

A idéia fecha-se tanto em si que esquece de olhar ao redor: a arte pela arte. Vemos então duas divisões ideológicas: arte como simples mercadoria versus arte como pura significação.

No mesmo sentido, uma oposição entre os campos de produção erudita e da indústria cultural. O campo da produção erudita tende a produzir suas normas de produção e os critérios de avaliação, obedecendo à lei da concorrência pelo reconhecimento do grupo de pares.

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Além disto, o campo da produção erudita tende a ser destinado a outros produtores de bens culturais. Já o campo da indústria cultural tende a ser destinado a não-produtores de bens culturais – o grande público – e obedece à lei da concorrência de atingir o maior público possível.

A intervenção do grande público chega a ameaçar a pretensão do campo ao monopólio da consagração cultural: “se a peça fizer muito sucesso, não pode ser boa”. Quem aqui admite ir ao Lala Schneider?

E há uma correlação entre o fechamento do campo erudito em si mesmo e seu fechamento em relação à parcela não-intelectual de produção cultural (ou seja, os não-produtores).

Pode-se medir o grau de autonomia de um campo de reprodução erudita com base no poder de que dispõe para definir as normas de sua produção como arena fechada de uma concorrência pela consagração cultural e pelo poder cultural de concedê-la.

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A discussão entre escolas, portanto, é pelo poder simbólico de dizer o que é arte. É pelo status simbólico de oferecer, ou não, legitimidade cultural. “Isto não é teatro! Isto É Teatro! Isto é teatro”…

A briga se dá em torno da ortodoxia dos campos: “tal companhia de teatro conhece Mais ou Menos o que faz…”. Quais os critérios que definem o exercício legítimo de um tipo determinado de prática intelectual ou artística” (o que é teatro?) é a pergunta em que recaem todos (todos) os Podcast QuartoAto.

Os campos artístico e intelectual, dentre os agentes sociais são os que mais dependem do reconhecimento do outro para sua existência. E este outro é, além de parceiro, concorrente na disputa pelo mercado de bens simbólicos.

Quando do reconhecimento de um artista pelos seus pares (releia os três parágrafos anteriores, porque isto é complicado mesmo) o que se reconhece é a própria ortodoxia deste.

No movimento romântico de afastamento do campo erudito do público de não-produtores, a crítica (recrutada em grande parte no próprio corpo de produtores) passou cada vez menos a produzir instrumentos de apropriação ao público e cada vez mais a fornecer uma interpretação “criativa” para uso dos “criadores”.

E apesar de isto contribuir, cada vez mais, no afastamento do público de não-produtores e, apesar de isto ser bem grave, este será nosso assunto em outro momento.

Como diz Bourdieu: “no enfrentamento entre produtores (artísticos) a acusação se dá em torno de sua pretensão à ortodoxia (e) aquele autor reconhecido tem, portanto, sua pretensão à ortodoxia reconhecida”.

E muito embora o campo de produção erudita nunca esteja tomado pela ortodoxia, está sempre às voltas com a questão da ortodoxia. Ele está sempre às voltas com a questão dos “critérios que definem o exercício legítimo de um tipo determinado de prática intelectual ou artística. “

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O meta-teatro da Peça Ruim, que fala dos assuntos nacionais, retomando temáticas e autores renomados pelo cânone universal conquista o público local além de lançá-lo à impressão de ser globalizado e de que seu teatro é, portanto, globalizante. Mefisto, Irina de Tchékhov e o prêmio Shell (é o que temos) nos causam a impressão de que estamos vivendo a própria história do teatro universal.

Saímos da província para o mundo, e a reiteração do mecanismo de autonomização se faz sobremaneira sem ser notado.

Ainda, há uma reiteração da própria legitimidade enquanto instituição de reprodução cultural – uma forma que se relaciona com o campo da outrora incipiente indústria cultural (com a referência à baixa comédia com seus recursos de farsa – quiprocó e caos em cena – e teatro de boneco – com o sapo-produtor – e à comédia italiana com o ganso enquanto figura tola semelhante aos servos, com a referência ao melodrama, com o elemento surpresa mefisto resolutor de todos os grandes problemas criados em cena) e com o campo da produção erudita na referência a temas solenes por ela tratados (Oh! Existência!).

Isto implica que a Peça Ruim é transcendente no sentido de manejar ambos mercados conhecidos – o da indústria e o erudito.

Mas é justamente este contexto isolado das condições em que o próprio teatro é produzido que é estimulante a um contexto de teorias puras referido pelo bourdieu. No sentido de que sua meta-teatralidade não problematiza o seu próprio contexto de produção, mas o reitera. Reitera a própria temática teatral com louvor, há que se destacar, mas não a problematiza.

É uma peça teatral com temas e referências teatrais, dirigido a um público teatral. É a corporificação da autonomia nomeada por Bourdieu.

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A análise da Peça Ruim, em si, não será mais profícua que qualquer estudo estruturalista (como se estruturalismo fosse qualquer coisa) e sua limitação restaria justamente, no anacronismo implicado pelo fato de que o estruturalismo aconteceu há já mais de noventa anos.

Por outro lado, no olhar voltado à história das artes, a genialidade também fora encontrada na própria reiteração do tempo histórico pela própria obra artística, basta olharmos para toda a produção naturalista do XIX.

E é neste vai e vém argumentativo, é com as produções que lançam o argumento e a discussão em direções cada vez menos previstas, que o humano se ergue. Como diz Bourdieu citando Marcel Proust em Sodoma e Gomorra: “As teorias e as escolas, como os micróbios e os glóbulos, se entredevoram e garantem, por sua luta, a continuidade da vida”.

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