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Caçadores de mitos
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Reprodução
A resenha que você vai ler agora foi publicada originalmente na edição 4 da revista Dicta&Contradicta.

Com o lançamento, na semana passada, da quinta edição da revista Dicta&Contradicta, é padrão dos editores colocar on-line todo o conteúdo da edição anterior, e o número 4 (de dezembro de 2009) tem uma resenha de livro escrita por mim. Como a versão integral on-line da Dicta 4 ainda não está disponível, os editores me autorizaram a já publicar, aqui no Tubo, o texto que escrevi para a revista. Confiram:

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No começo de 2009, enquanto aguardava a divulgação do resultado do vestibular da Universidade Federal do Paraná, fiz um teste: abordei alguns vestibulandos e perguntei o que eles tinham aprendido sobre Galileu Galilei no ensino médio ou no cursinho. Apenas um adolescente se lembrava de algo: que o italiano tinha sido perseguido por afirmar que a Terra era redonda. Desde então não faço mais esse tipo de enquete, até porque a Harvard University Press lançou uma coletânea abrangente das respostas que inevitavelmente sairão da boca de vestibulandos, professores, jornalistas e “intelectuais”: é Galileo goes to jail and other myths on science and religion, organizado por Ronald Numbers.

A relação entre ciência e religião é um dos temas mais importantes do século 21, ao menos na metrópole, onde a cada ano são lançados inúmeros livros sobre o assunto e organizam-se debates televisivos em universidades envolvendo gente como Michael Shermer, Dinesh D’Souza, Richard Dawkins e John Lennox (basta procurar no YouTube). Por aqui, o mercado editorial ignora solenemente autores como Karl Giberson, Kenneth Miller, Ian Barbour e John Polkinghorne (apenas um livro de cada um desses dois últimos autores recebeu edição brasileira), enquanto publica a rodo as obras de ateístas militantes, fazendo à sensatez uma única concessão ao ter lançado A linguagem de Deus, de Francis Collins. Como consequência, por pouco ler e muito repetir, o cérebro dos “formadores de opinião” secou a ponto de perpetuar irrefletidamente os mitos do livro de Numbers, apesar das evidências contrárias – que não são poucas.

Divulgação
O livro tem 25 ensaios, cada um derrubando um mito envolvendo ciência e religião. Metade dos autores é formada por ateus ou agnósticos.

Os 25 ensaios – escritos por 12 ateus ou agnósticos, 5 protestantes tradicionais, 2 protestantes pentecostais, 1 católico, 1 judeu, 1 muçulmano, 1 budista e 2 autores com “um lado espiritual independente de religiões”, como dizem no orkut – estão ordenados cronologicamente, iniciando com o surgimento do Cristianismo e terminando com os debates sobre o criacionismo e a secularização da cultura ocidental moderna. Isso significa que o desfile de cérebros parte de Agostinho, com o seu De Genesi ad litteram, e passa por Avicena, Giordano Bruno, Copérnico, Descartes (descrito como “o mais incompreendido dos filósofos”), Newton, até chegar a Darwin (nada menos que 9 dos 25 mitos abordam a teoria da evolução) e Einstein – sem falar, claro, de Galileu, a cujo respeito foi lançado, também este ano (nota: a resenha foi publicada originalmente em 2009), um livro muito completo sobre seu processo inquisitorial: Galileu, pelo copernicanismo e pela Igreja, de Annibale Fantoli.

O objetivo do livro não é defender nenhuma religião em especial – sequer tenta defender a religião em si: um dos ensaios questiona a “lenda piedosa” sobre uma suposta reconversão de um Darwin moribundo, e outro desmente a crença de Einstein em um Deus pessoal. O capítulo 9 diminui o impacto do Cristianismo na construção da ciência moderna, mas recorrendo a um espantalho: não consta que Rodney Stark, Stanley Jaki ou Thomas Woods considerem o cristianismo a única base da ciência moderna, desprezando as contribuições clássicas, judaicas ou islâmicas. Ainda assim, no fim das contas a religião sai ganhando nesse trabalho de desconstrução, mas apenas porque na maioria das lendas os vilões andam de batina e não de jaleco branco.

Alguns mitos, à primeira vista, parecem simplórios demais para merecer ensaios no livro. Os cristãos medievais acreditavam que a Terra era plana? Mas Stephen Jay Gould já não tinha dedicado um trecho de seu Pilares do tempo, na década passada, para desmentir essa ideia? Pois Lesley Cormack, autora do texto sobre a “Terra plana”, mostra que, no mesmo ano em que Gould publicava sua obra sobre ciência e religião, eram lançados livros didáticos de ensino médio nos Estados Unidos reforçando a lenda – que, a julgar pela resposta do vestibulando da UFPR, segue firme e forte. Aliás, todos os capítulos têm como epígrafes textos que deram origem ou que mantêm viva a mitologia. Assim, vemos que em 2006 há quem ainda afirme que os calvinistas escoceses se opunham à anestesia durante o parto porque ela contrariava a determinação divina de Gênesis 3,16, ou que a Igreja Católica havia proibido a dissecação de cadáveres.

Entre os criadores de mitos, no entanto, os mais citados no livro editado por Numbers são os norte-americanos Andrew Dickson White e John William Draper, autores de A history of the warfare of science with theology and Christendom (1896) e History of the conflict between religion and science (1874) respectivamente. Podemos dizer que são os pais do conflito entre fé e ciência. A invenção – ou reinterpretação – dos fatos feita por White e Draper continua tão popular que só é possível concluir que seus discípulos, defensores modernos da guerra entre ciência e religião, os Hitchens, Dennetts e Dawkins da vida, podem até pensar que estão levando seus leitores ao século 21, mas na verdade estão é mantendo todo mundo preso no século 19.

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Eu comprei meu exemplar de Galileo goes to jail na Amazon. O preço atual é US$ 18,45.

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Para conferir outras resenhas de livros publicadas no Tubo, clique no link “Para sua biblioteca”, logo abaixo do cabeçalho do blog.

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