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Deixar Aristóteles para trás foi uma contribuição fundamental dos reformadores para o avanço da ciência, segundo historiadores. (Imagem: Reprodução)
Deixar Aristóteles para trás foi uma contribuição fundamental dos reformadores para o avanço da ciência, segundo historiadores. (Imagem: Reprodução)| Foto:

O dia 31 de outubro é tradicionalmente aceito como o “aniversário” da Reforma Protestante, pois foi o dia em que Martinho Lutero enviou suas 95 teses ao arcebispo de Mainz, na Alemanha (há a história segundo a qual ele pregou as teses na porta de algumas igrejas de Wittenberg, mas há alguma controvérsia sobre isso, até onde eu sei). Nos 500 anos da Reforma, trago dois artigos de historiadores que tratam da influência do modo de pensar protestante sobre o desenvolvimento da ciência. Um deles é de Mark Noll, publicado no site da Fundação BioLogos. Outro é de Peter Harrison, no site da ABC australiana.

É interessante lê-los em conjunto, pois os dois textos se completam. O de Harrison é mais longo e explicativo. Noll, por outro lado, ressalta que a Reforma não é uma espécie de raio de luz em meio à escuridão completa no que diz respeito à ciência, pois as bases da Revolução Científica já vinham sendo construídas na Europa católica e, mesmo depois da Reforma, continuou havendo contribuição relevante dos católicos à ciência.

Onde ambos os autores convergem é na tese de que o fator decisivo quando falamos de Reforma e ciência é uma consequência do desafio à autoridade estabelecida: o rompimento definitivo com o pensamento aristotélico que influenciava a filosofia católica da Baixa Idade Média, com o consequente abandono do método dedutivo que prevalecia até então, sem falar de algumas noções aristotélicas claramente erradas, como a da órbita circular dos corpos celestes. Além disso, abriu-se uma nova maneira de ver a própria atividade científica, até então encarada mais como um meio de contemplar a grandeza divina e aperfeiçoar-se espiritualmente que como algo com valor intrínseco: Harrison lembra o britânico Francis Bacon, que encarava a ciência como uma maneira de retomar o controle do ser humano sobre a natureza, um poder que o homem tivera no início a criação e fora perdido com o pecado original. Em outras palavras, mais ação e menos contemplação.

No início de seu texto, Harrison cita uma ficção de história alternativa que se passa em um mundo semelhante ao nosso, no qual não houve a Reforma, e parte daí para se perguntar como seria a ciência atual sem esse evento. Ele não tem a resposta, e ninguém tem. Os católicos teriam, mais cedo ou mais tarde, percebido as limitações da filosofia natural aristotélica? Isso vai ficar no campo da especulação. Só podemos trabalhar com o que realmente aconteceu.

Uma coisa que nenhum dos autores mencionou é que houve um legado negativo da Reforma: as primeiras lendas (ou fake news, se preferirem) sobre uma oposição religiosa à ciência vieram dos reformadores, que, no esforço propagandístico de retratar como mau tudo que fosse católico, simplesmente ignoraram as contribuições vindas dos “tempos sombrios” do que hoje chamamos de Idade Média. Isso quem diz é outro historiador, Allan Chapman, da Universidade de Oxford. Lembram do caso de Silvestre II, o papa matemático? A lenda segundo a qual seu conhecimento era fruto de um pacto com o demônio tinha sido criada por causa de uma disputa política no contexto da Querela das Investiduras, mas no século 16 foi “reciclada” pelos protestantes para mostrar uma suposta hostilidade católica à ciência. O tipo de coisa que, depois, acabaria se virando contra os próprios protestantes, vítimas eles próprios de outras lendas, algumas das quais já tratamos aqui.

Hoje, o mundo protestante é extremamente multifacetado, justamente pelo caráter descentralizado. O movimento fundamentalista iniciado no século passado deu origem a grupos que buscam uma interpretação totalmente literal do Gênesis, levando a coisas como o criacionismo de Terra jovem e a rejeição a qualquer coisa que remeta à Teoria da Evolução. Outras comunidades protestantes, especialmente as históricas, não têm qualquer problema com Darwin nem com o que mais a ciência nos diga sobre a origem do universo, da vida e do homem. Especialmente no mundo anglo-saxão, mas também em outras regiões, como a América Latina, o engajamento dos protestantes no diálogo entre ciência e fé é imprescindível. Tudo isso, o bom e o ruim, deriva daquele acontecimento de exatamente 500 anos atrás.

Pequeno merchan

Além de editor e blogueiro na Gazeta do Povo, também sou colunista de ciência e fé na revista católica O Mensageiro de Santo Antônio desde 2010. A editora vinculada à revista lançou o livro Bíblia e Natureza: os dois livros de Deus – reflexões sobre ciência e fé, uma compilação que reúne boa parte das colunas escritas por mim e por meus colegas Alexandre Zabot, Daniel Marques e Luan Galani ao longo de seis anos, tratando de temas como evolução, história, bioética, física e astronomia. O livro está disponível na loja on-line do Mensageiro.

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