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Depressão não é coisa do demônio
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A frase do título é um tanto óbvia, mas precisou acontecer uma tragédia para algumas pessoas perceberem isso? O Washington Post publicou, anteontem, uma reportagem mostrando como o suicídio, na semana passada, de Matthew Warren, filho do pastor Rick Warren, está chamando a atenção de líderes e fiéis pentecostais americanos para que encarem com mais seriedade problemas como a depressão. Warren é um dos pastores americanos mais conhecidos em todo o mundo, autor de best-sellers como Uma vida com propósitos, e por isso a tragédia familiar ganha proporções ainda maiores.

Vejam o que diz o pastor Ed Stetzer: “Parte de nossa crença é a de que Deus pode mudar tudo e, porque Cristo vive em nós, tudo em nossas corações e mentes deve ser consertado. Mas isso não significa que algumas vezes não precisemos de ajuda médica, ou da comunidade, para conseguir isso”. Já é um começo, mas algumas vezes? Eu diria “sempre que for o caso”, e quem decide quando é o caso não é exatamente o padre ou o pastor…


Vitral da catedral de Canterbury mostra a cura de um homem louco; várias vertentes do Cristianismo ainda estão à procura da maneira sensata de lidar com problemas mentais. (Foto: Janet Burgess/stock.xchng)

Talvez a relação entre o Cristianismo é as doenças de ordem mental ainda não tenha achado seu ponto de equilíbrio. O extremo mais comum é esse que vemos no caso dos pentecostais, a tendência de atribuir todo e qualquer tipo de problemas mentais a causas espirituais: ação demoníaca, uma vida de pecado, resistência à graça divina, ou até mesmo os pecados dos ancestrais. Já vi esse tipo de “quebra das maldições familiares” entre católicos carismáticos, por exemplo, o que é assustador (só para ressaltar, estamos falando de gente que genuinamente acredita nisso, e não das “sessões de descarrego” de pastores caça-níqueis). O outro extremo, menos comum, é um ceticismo exagerado que chega a negar a ação do sobrenatural no mundo (pense no padre Karras de O Exorcista).

Onde está a posição sensata no meio dos dois extremos? É o que os pentecostais americanos estão tentando descobrir agora, depois dessa e de outras experiências traumáticas, como o caso de Michelle Freeman, que conta ao Post como ela afastou de si o marido, que tinha depressão, dizendo que não existia “depressão”, ele é que estava resistindo a Deus. Anos depois, foi a vez de ela ser diagnosticada com o mesmo problema. Foi necessário chegar a esse ponto para ela perceber que doenças mentais não tinham ligação nenhuma com o desenvolvimento espiritual do indivíduo. O que faz falta é o velho conselho (atribuído a santo Inácio de Loyola, se não me engano) de rezar como se tudo dependesse de Deus e agir como se tudo dependesse de si mesmo. Ou aquele trecho do Eclesiástico que fala do médico (38, 1-8): “Honra o médico por causa da necessidade, pois foi o Altíssimo quem o criou. (Toda a medicina provém de Deus), e ele recebe presentes do rei: a ciência do médico o eleva em honra; ele é admirado na presença dos grandes. O Senhor fez a terra produzir os medicamentos: o homem sensato não os despreza. Uma espécie de madeira não adoçou o amargor da água? Essa virtude chegou ao conhecimento dos homens. O Altíssimo deu-lhes a ciência da medicina para ser honrado em suas maravilhas; e dela se serve para acalmar as dores e curá-las; o farmacêutico faz misturas agradáveis, compõe unguentos úteis à saúde, e seu trabalho não terminará, até que a paz divina se estenda sobre a face da terra.” Sei que os protestantes não consideram o Eclesiástico um livro canônico, e por isso o retiraram da Bíblia, mas ninguém diria que o conselho não é sensato.

A reportagem ainda trata do tema do suicídio, mostrando como ele é encarado pelo Cristianismo e pelo Judaísmo. Mais recentemente, adotou-se uma atitude mais tolerante em relação ao suicida, e arrisco dizer que isso só foi possível graças aos avanços da medicina, que jogou luz justamente sobre problemas como a depressão e o transtorno bipolar. Vejamos, por exemplo, o que diz o Catecismo da Igreja Católica, que reafirma a gravidade do suicídio, mas faz ressalvas: “Perturbações psíquicas graves, a angústia ou o temor grave duma provação, dum sofrimento, da tortura, são circunstâncias que podem diminuir a responsabilidade do suicida”, acrescentando ainda que “(n)ão se deve desesperar da salvação eterna das pessoas que se suicidaram. Deus pode, por caminhos que só Ele conhece, oferecer-lhes a ocasião de um arrependimento salutar. A Igreja ora pelas pessoas que atentaram contra a própria vida”. Assim, como a medicina comprova que o suicídio nem sempre é uma opção livre, deliberada e refletida de um ser humano, a doutrina católica compreendeu esse aspecto e o incorporou em seu ensinamento sobre o suicídio. Afinal, quem pode julgar a responsabilidade moral de uma pessoa que se mata graças a um desarranjo químico em seu cérebro?

Evento sobre ciência e fé em Curitiba
No próximo dia 20, é a vez deste blogueiro dar uma palestra na Escola do Bosque:

Evento sobre ciência e fé ocorre em Curitiba no dia 20. (Imagem: Divulgação)

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