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Tratar a religião como nada mais que fonte de conforto para os fiéis, e dizer que o conforto é justamente o que atrai as pessoas à religião é ser reducionista demais. (Foto: Sarah Kobunski/stock.xchng)
Tratar a religião como nada mais que fonte de conforto para os fiéis, e dizer que o conforto é justamente o que atrai as pessoas à religião é ser reducionista demais. (Foto: Sarah Kobunski/stock.xchng)| Foto:

Meses atrás vi uma entrevista do Marcelo Gleiser no programa da Marília Gabriela em que ele dizia estar trabalhando num projeto sobre ciência e fé, bancado pela Fundação John Templeton (espero não estar sendo traído pela memória, mas pelo menos alguma interação entre o astrofísico e a fundação já houve). Se realmente ele estiver nessa, espero que isso o ajude a compreender melhor algumas coisas sobre a relação entre ciência e fé. Digo isso porque, há quase um mês, ele escreveu no blog 13.7, do qual é um dos colaboradores, sobre uma experiência que teve em um terminal rodoviário de Brasília (quatro dias depois, o mesmo texto foi publicado, em português, em sua coluna no jornal Folha de S.Paulo). Ele falava do impacto do meteoro que provocou a extinção dos dinossauros, e que “não havia necessidade de intervenções divinas para explicar esses episódios tão essenciais na história do planeta e da humanidade”, quando um trabalhador perguntou “Então, o doutor quer tirar até Deus da gente?”

A resposta de Gleiser é boa: “a ciência não quer tirar Deus das pessoas, ainda que alguns cientistas queiram. A ciência explica como o mundo funciona, ilumina as maravilhas do universo, grandes e pequenas, para que todos possam ver e apreciar” (a versão em português omitiu trechos dessa resposta), e acrescentou que a pesquisa científica nos aproxima da natureza e dos mistérios que enfrentamos à medida que tentamos entender melhor o universo. Até aí, tudo bem. Mas, entre o momento em que descreve a pergunta e o trecho em que dá a resposta, além de argumentar em favor da educação científica (argumentação com a qual eu concordo), Gleiser desenvolve uma tese de “religião como conforto” que ele já havia usado em uma entrevista ao jornal Zero Hora, de Porto Alegre. Por “religião como conforto”, não estou falando de dizer que a religião providencia conforto às pessoas. Isso ela realmente pode fazer, e muitas vezes faz. Estou falando da ideia de que a principal função da religião é oferecer conforto às pessoas, ou de que a religião se resume a isso. Gleiser diz (destaques meus):

“É muito mais simples você lidar com o pensamento religioso do que com o científico. Porque o pensamento religioso tem um lado acolhedor que o científico não tem. Não temos controle sobre a nossa vida, mas quando se diz que há uma entidade que tem controle sobre tudo e eu dou minha confiança a essa entidade, passo pelo menos a ter a sensação de controle sobre coisas que eu não posso controlar. Essa é a condição que leva as pessoas à religião. É tentar, de alguma forma, ter controle sobre o que não é controlável. É compreensível que as pessoas sejam levadas a isso. Não saber o que acontece quando a gente morre, o sentido da vida, o motivo de estarmos aqui, tudo isso é angustiante. A religião de certa forma oferece um grande abraço para as pessoas, que a ciência não oferece.”

pessoa em oração

Tratar a religião como nada mais que fonte de conforto para os fiéis, e dizer que o conforto é justamente o que atrai as pessoas à religião é ser reducionista demais. (Foto: Sarah Kobunski/stock.xchng)

É uma maneira muito reducionista de encarar a religião. É o mesmo reducionismo que aparece na pergunta anterior, desta vez contando com a cumplicidade do repórter. Vejam (novamente, itálicos meus):

“ZH — A história da ciência é, sob certo ponto de vista, uma permanente conquista de terreno que pertencia à religião, no que diz respeito a oferecer explicações sobre o mundo. Porém, apesar da aparente vitória, quase todo mundo acredita em divindades, mas poucos são capazes de compreender a ciência por trás de tudo que os cerca. O que isso ensina sobre a relação da humanidade com a razão e com a fé?

Gleiser — A ciência é uma maneira de pensar sobre a vida e sobre o mundo que, de certa forma, é mesmo antagônica à questão religiosa. Na religião, o que você não entende você atribui a uma divindade que explica ou que cria. Na ciência, o que você tem de fazer é duvidar sempre e tentar encontrar respostas que não dependam de ações sobrenaturais. São posições bastantes antagônicas. O povo brasileiro, em particular, é bastante espiritualizado. É raro eu dar uma palestra sobre a ciência sem que alguém me pergunte se acredito em Deus ou não.”

E aí temos Marcelo Gleiser defendendo o Deus das lacunas.

Por isso, recomendo a vocês a leitura da resposta que meu amigo Gabriel Ferreira, em seu blog pessoal, deu a essa entrevista de Gleiser. Deixo aqui um trecho: “Há pelo menos dois séculos (pelo menos!!!), é ponto pacífico, ao menos entre as pessoas que já leram mais do que dois livros na vida, que as questões fundamentais que regem a intuição religiosa movem-se em outro terreno, a saber, o do Sentido. Assim, mesmo quando a Teologia judaico-cristã vê em Deus a fonte de toda a criação, não quer responder com isso à questão sobre como as coisas vieram a ser, mas por quê? O Gênesis nunca pretendeu ser um livro de biologia ou de geologia, nem tampouco um Prozac avant la lettre como o faz parecer Gleiser”. Gabriel, que é mestre e doutorando em Filosofia, ainda explora uma contradição de Gleiser, que trata tudo como obra do caso e defende um “dever ético” de sermos guardiões do universo. “De onde o professor pretende derivar esse ‘dever’? Ele é racionalmente justificável? Por que deveríamos ser guardiões de um ‘acaso relevante’? Se não há propósito ou finalidade alguma na vida sofisticada que aqui temos, por que este fetiche?”, questiona.

Um amigo, leitor do Tubo e que acompanha sempre os textos de Gleiser na Folha, costuma perceber em certos textos uma “inquietação espiritual” no astrofísico, como se ele estivesse intuindo algo, embora ainda não esteja certo disso. Em outras ocasiões, Gleiser já fez críticas ao ateísmo militante e parece ter uma posição mais conciliadora. Só que, a julgar por esses dois textos que comentamos hoje, ainda lhe falta perceber melhor o verdadeiro alcance da religião.

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Prêmio Top Blog, votação estendida!
Devia ter acabado no dia 9 a primeira rodada de votação da edição 2013 do prêmio Top Blog, mas resolveram adiar o prazo para… 25 de janeiro de 2014! Suponho que seja pela incompetência da organização, que deixou na mão os blogueiros que usam WordPress ao inventar um selo em Java, que o WordPress recusa (parece que agora estão resolvendo o problema). Em 2010 e 2011, o Tubo venceu a categoria “Religião/blogs profissionais” pelo voto popular. Em 2012, não ficamos entre os finalistas, mas o Blog Animal, também da Gazeta, venceu sua categoria pelo júri acadêmico. Para votar no Tubo, basta você clicar aqui ou no banner ao lado. Cada conta de e-mail só pode votar uma vez no mesmo blog, mas nada impede que, com uma mesma conta de e-mail, você possa votar em vários blogs de sua preferência. Da mesma forma, você pode votar no Tubo mais de uma vez se tiver duas ou mais contas de e-mail. Basta preencher, no alto da página do prêmio, seu nome e e-mail. Você receberá uma mensagem com um link para confirmar seu voto. Também é possível votar pelo Facebook.

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