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Um conto de duas matrizes
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Peço perdão a Charles Dickens, mas o negócio é que nos últimos dias apareceram dois textos interessantes, ambos envolvendo matrizes, e ambos escritos por físicos. O primeiro deles é um exercício interessante sobre como nos comportamos em relação a um debate. Sean Carroll viu uma discussão transmitida pela internet entre um especialista em história da ciência e um criacionista da Terra jovem e se pergunta: por que raios dar palanque para gente cujo “conhecimento científico” é, para ser gentil, tosco? Então ele criou uma matriz onde podemos colocar todos aqueles com quem costumamos debater, vejam aí embaixo.

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Escolha um tema e coloque na matriz as pessoas que você conhece.

O interessante dessa matriz é que ela é totalmente flexível, por exemplo: se o assunto é evolução, em relação a mim um criacionista da Terra jovem provavelmente estaria no quadrado vermelho, já que discordamos veeentemente sobre o assunto e não percebo muita sensatez nos argumentos científicos desse grupo. Agora, se o assunto fosse a existência de Deus, eu muito provavelmente colocaria esse mesmo criacionista no grupo amarelo, pois, embora concordemos que Deus existe, a maneira 100% literal como o criacionista interpreta a Bíblia soa embaraçosa para mim. Enfim, a matriz vale para qualquer tema de discussão, inclusive fora do âmbito da ciência ou da religião.

Mas qual o objetivo de Carroll com a matriz? Que normalmente nós gostamos é de discutir com aquelas pessoas que estão no quadro vermelho, porque são fáceis de esmagar e ainda ganhamos reconhecimento por parte dos amigos. Vejam o que o físico escreve: One of the least pleasant aspects of the atheist/skeptical community is the widespread delight in picking out the very stupidest examples of what they disagree with, holding them up for sustained ridicule, and then patting themselves on the back for how rational they all are. Mas, para Carroll, os adversários que precisamos enfrentar estão é no quadrado verde. E mais: além de dizer com quem deveríamos debater, o físico lembra por que devemos debater. E não é para convencer pessoas: My own goal is not really changing people’s minds; it’s understanding the world, getting things right, and having productive conversations. Acredito que a partir disso podemos analisar qual é o estado atual do debate sobre ciência e religião. O que as pessoas estão realmente buscando? Como vocês veriam alguém que se entrega à missão de convencer outros de algo sobre o qual ele não está certo de ter encontrado a verdade?

A segunda matriz não é tão maleável, mas é igualmente interessante. Ano passado a revista Physics World promoveu uma enquete entre os leitores, e uma das questões lidava com o modo como os físicos viam a relação ciência-religião. Robert Crease pegou as respostas e classificou em quatro grupos os cientistas que deram suas respostas. Assim, a maneira como as pessoas veem a relação entre ciência e fé depende da maneira como se vê a ciência e a fé – como um conjunto de crenças ou afirmações, ou como uma maneira de encarar o mundo e um conhecimento em construção. O curioso, pelo que se entende da explicação, é que dentro de um mesmo quadrante pode haver pessoas com ou sem crenças religiosas.

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Dependendo de como vê a ciência e a religião, cada um pode ser encaixado em um desses quadrantes.

A partir disso, troquei alguns e-mails com o professor Crease (que é autor de Os 10 mais belos experimentos científicos, da Jorge Zahar). Ele lembra que seu texto não tem autoridade científica; “é apenas uma coluna de 900 palavras tentando achar sentido numa enquete sem caráter científico”, e que por isso pode não dar conta do cenário todo. Um aspecto que levantei é o fato de algumas religiões serem simultaneamente conjuntos de crenças e de princípios, e ele disse que realmente a situação não é questão de “ou isso, ou aquilo”. “Princípios podem levar à mudança de crenças, e crenças afetam princípios. É como a relação com a confiança, que descrevi aqui. As pessoas tendem a ver a religião apenas como crença, o que é errado”, afirma o físico.

Também conversamos um pouco sobre os nomes em cada quadrante, porque achei curioso que cientistas com viés marxista e críticos à religião fossem incluídos no quadrante em que ciência e religião reforçam uma à outra. Crease realmente acha que a palavra escolhida não foi a mais adequada, e que talvez fosse o caso de rever as designações.

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Um dos livros de Crease foi lançado no Brasil.

Por último, perguntei a Crease como ele via o fututo da discussão sobre ciência e religião, já que dois terços dos entrevistados foram colocados por ele dentro do quadrante de “potencialmente conflitantes”. O professor afirma que o debate precisa ser remodelado a partir de uma melhor compreensão dos diferentes sentidos que ciência e religião têm na vida e no trabalho das pessoas. No texto de julho de 2007, Crease escreveu: It would be interesting to see what would happen if we got them talking, not about their beliefs, but about how they form and defend those beliefs. Perguntei se, daquela época para cá, havia aparecido alguém que agisse como Crease gostaria. “Não. E esse é o problema, a discussão está cheia de pose. É muito fácil se sentir correto e superior em relação às crenças dos outros, mas isso paralisa o diálogo. Mais importante que as crenças é a razão pela qual temos essas crenças, e não outras – mas é muito mais difícil de falar sobre isso, pois esta é uma discussão que não termina nunca e na qual pode ser impossível chegar a uma conclusão. Mas, enquanto não começarmos a discutir isso, o diálogo não avançará nunca”, respondeu.

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Espero que todos estejam acompanhando o Tubo de Ensaio no Twitter. Quem já segue o blog percebe que de uns dias para cá comecei a anunciar algumas outras coisas, e não apenas as atualizações que eu faço aqui. A ideia é continuar nessa, colocando links de textos interessantes ou avisando sobre os eventos relativos ao nosso tema.

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