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Laura Hobgood-Oster e o cão Tiny: a autora de "The friends we keep" defende a compaixão como parâmetro para uma relação autenticamente cristã com os animais.
Laura Hobgood-Oster e o cão Tiny: a autora de "The friends we keep" defende a compaixão como parâmetro para uma relação autenticamente cristã com os animais.| Foto:
A professora e escritora Laura Hobgood-Oster e o cão Tiny.

Laura Hobgood-Oster e o cão Tiny: a autora de “The friends we keep” defende a compaixão como parâmetro para uma relação autenticamente cristã com os animais. (Foto: Dr. Jimmy Smith/Southwestern University)

No post de ontem, vimos o que algumas religiões dizem a respeito do uso de animais em pesquisas, inclusive o Cristianismo, que pelo menos em suas vertentes majoritárias legitima os testes com animais no caso do desenvolvimento de medicamentos, desde que seguidos certos parâmetros de respeito aos animais. Hoje, trago para os leitores a experiência de Laura Hobgood-Oster, professora de Religião e Estudos Ambientais na Universidade Southwestern. Ela é a autora de The friends we keep — Unleashing Christianity’s compassion for animals, que li assim que foi lançado, em 2010 (meu exemplar é cortesia da editora, oferecida quando fui a Denver para a conferência anual da Religion Newswriters).

Gostei muitíssimo do livro, embora eu suponha que a autora me classificaria entre os “especistas”… The friends we keep é uma obra abrangente sobre a relação entre o homem e os animais, tratada dentro de um enfoque histórico e teológico. O uso de animais como alimento, seu emprego em atividades esportivas, sua importância como animais de estimação, a presença constante dos animais na Bíblia e nas vidas dos santos, tudo isso vem recheado com histórias reais de animais com quem a autora teve contato direto ou de quem ela ouviu falar. Os relatos e argumentações culminam no capítulo final, “Where have all the animals gone?”, em que Laura argumenta contra a guinada antropocêntrica que o Cristianismo teria dado nos últimos séculos (com um empurrãozinho do Iluminismo e da urbanização), a ponto de ter se tornado uma religião especista (para quem não é familiar com o termo, pense no “especismo” como um racismo aplicado às espécies biológicas. Um especista defende que certas espécies são superiores a outras, o que legitimaria direitos diferentes para cada grupo) e dando margem a acusações como a de Lynn White Jr., para quem o Cristianismo era o grande culpado pela catástrofe ambiental atual.

A chave do livro está no subtítulo: é o conceito de compaixão, e é isso que a autora propõe para guiar um relacionamento autenticamente cristão com os animais. E aonde isso nos leva em relação ao uso de cobaias em pesquisas? Das mais de 200 páginas do livro, três (165 a 167) são dedicadas ao tema das pesquisas. Laura conta sua experiência no comitê de ética em pesquisa com animais da Southwestern. “Não nego que as questões relativas ao sacrifício de animais em pesquisas científicas são complicadas”, diz. “Mas, pelo que percebi depois de entrar em laboratórios e ler sobre essas experiências, a pesquisa biomédica é realizada em uma quantidade além da necessária e com propósitos controversos, para dizer o mínimo”, continua. É sobre isso que Laura conversou com o Tubo, em uma entrevista por e-mail.

Capa do livro The Friends we keep

“The friends we keep” oferece uma visão abrangente do papel dos animais no Cristianismo e das questões atuais que envolvem nossa relação com eles. (Foto: Divulgação)

Se entendi bem, você não oferece uma resposta definitiva sobre o uso de animais em pesquisa (e, aqui, limito-me à pesquisa para medicamentos, porque posso concluir que você condena o uso de animais em testes para cosméticos). Entre 2010 e hoje, você chegou a aprofundar, ou mudar, sua opinião sobre o tema?

Em primeiro lugar, sim, você entendeu bem. O uso de animais para pesquisa de cosméticos tem problemas éticos em todos os níveis e devia cessar imediatamente. Em segundo lugar, com base em minha pesquisa e na experiência do uso de animais em testes de laboratório, e lembre-se de que eu trabalhei no comitê sobre cuidado e uso de animais da minha universidade, considero o uso de animais na pesquisa médica um pouco mais difícil de avaliar. Por exemplo, às vezes os resultados são benéficos também para os próprios animais não humanos, embora obviamente o desenvolvimento de tratamentos para humanos seja o objetivo final na maioria dos casos.

No entanto, quando as experiências começam a se repetir, quando não se leva em consideração o sofrimento dos animais envolvidos, quando as vidas dos animais não são enriquecidas enquanto eles são usados como sujeitos, mesmo a pesquisa médica se torna muito questionável eticamente. Tenho acompanhado o caso brasileiro e vi algumas imagens. Parece-me que o local (isso se as imagens que encontrei forem mesmo do Instituto Royal, em São Roque) não estava proporcionando o conforto básico necessário para os beagles levarem uma vida relativamente boa enquanto são usados nas pesquisas. Isso é o mínimo: uma vida confortável, tão livre de dor quanto possível, com tempo ao ar livre, comida de qualidade, amor e compaixão. Se essas necessidades (que valem não só para beagles, mas até para ratos e outras cobaias também) não são cumpridas, a pesquisa é antiética independentemente dos objetivos.

No seu livro, você escreve: “pelo que percebi depois de entrar em laboratórios e ler sobre essas experiências, a pesquisa biomédica é realizada em uma quantidade além da necessária e com propósitos controversos, para dizer o mínimo”. Qual seria, então, a quantidade “necessária”? E há propósitos legítimos que poderiam justificar o uso dos animais em pesquisas?

Vários estudos com farta documentação e publicados em revistas científicas mostram que o uso de animais é terrivelmente exagerado, em pesquisas que são redundantes, mal planejadas ou que não consideram alternativas que descartam o uso de animais, como modelos computadorizados ou em culturas de células. Ratos, por exemplo, são usados com frequência porque são baratos e vistos como descartáveis. São usados com muita frequência como ferramenta de ensino (e isso quem diz é uma professora), mesmo que toda carta de princípios éticos diga que a linha para o uso de animais seja a geração de conhecimento novo. Em muitos casos, os animais não são modelos confiáveis para saber qual seria a reação em um humano. E, mesmo sabendo disso, o uso de animais é mantido. Então, qual seria a quantidade necessária? Seria recorrer aos animais o mínimo possível, tentando de toda maneira evitar seu emprego. A norma deveria ser a obrigação de tentar exaustivamente encontrar modelos que não usem animais. Com o avanço rápido dos modelos computadorizados, acho que não precisaremos mais dos animais em pesquisa num futuro próximo.

Há propósitos legítimos? Sim, mas não são muitos. Os únicos propósitos legítimos são descobertas científicas para condições terminais (seja para humanos ou para os demais animais), e para as quais não existe outro tratamento médico ou tradicional (mudança de comportamento, remédios herbais, alívio da dor). Em outras palavras, quando o bem resultante supera largamente o potencial de sofrimento dos animais (incluindo humanos) nos quais essas terapias são testadas. Faz sentido? Mas é justamente aí que a coisa se complica. O câncer, por exemplo, muitas vezes é o resultado de um estilo de vida que os humanos escolhem ter. Não sempre, mas muitas vezes. Os animais deveriam sofrer em prol da cura de uma doença que nós mesmos nos infligimos por escolha própria? O mesmo vale para muitos casos de diabete. Não me entendam mal, sei que há tipos de câncer ou diabete que não têm nada a ver com ações ou escolhas humanas. Mas acho eticamente irrespnsável usar animais para pesquisar o tratamento de condições que são resultado da escolha humana. Um exemplo importante em que considero eticamente possíveis os testes em animais, e é um exemplo extremo, são doenças que afetam crianças e que teriam possibilidade de cura. E, mesmo assim, como já disse, os testes só são legítimos quando os animais têm todo o conforto possível, incluindo estimulação social e psicológica, alívio da dor, o máximo possível de tempo perto da natureza, e cuidado com sua saúde.

Por que eu digo isso, mesmo me considerando uma não especista? Em meu mundo ideal, nenhum animal seria usado em pesquisa científica para medicamentos. Eles são — pelo que posso dizer tanto da minha experiência pessoal quanto da leitura de textos filosóficos e religiosos e estudos biológicos e etológicos — tão merecedores da vida quanto os humanos são. Mas, quando simplesmente se fecha a porta ao diálogo, não se faz nenhum avanço. Os laboratórios vão se fechar aos defensores dos direitos dos animais e vamos perder mesmo as menores melhorias no conforto dos animais estocados nos complexos médico-científicos.

É possível construir uma justificativa para o uso de animais em pesquisas que não seja especista?

Até onde posso imaginar, não há nenhuma justificativa não especista para tal, e é por isso que mesmo minha resposta à sua pergunta anterior me deixa um pouco desconfortável. Se houver uma maneira de abrir portas e mudar o sistema, e essa a rota que devemos seguir. O único jeito de justificar o uso de animais de forma não especista talvez fosse argumentar que os humanos também sejam usados em pesquisas. O que, como bem sabemos, tragicamente e horrivelmente tem sido o caso. E os humanos usados são sempre os mais fracos (e não se sabe se isso ainda está acontecendo na indústria biomédica). Enquanto estivermos usando todo tipo de animal como participante involuntário na pesquisa médica, deixamos aberta a possibilidade de usar humanos também.

O que dizer de posições contrárias ao uso de animais como cães e primatas, mas que aceitam o uso de ratos, porquinhos-da-Índia ou outros tipos de cobaias?

Tenho conversado com várias pessoas que defendem o uso de ratos, mas não de primatas. Os chimpanzés têm sido um elemento central nessas discussões. Na maioria dos laboratórios norte-americanos, não se pode criar chimpanzés em cativeiro para pesquisa. É possível fazer isso com outros primatas (bonobos e outros macacos), mas não com chimpanzés. Os cães são uma situação bem peculiar, por causa do relacionamento de longa data que eles têm com os humanos (e que é o tema do meu próximo livro). Há uma sensação geral de que cães e os grandes primatas (chimpanzés, gorilas, orangotangos, bonobos), que são mais “aparentados” com os humanos, deveriam ser os primeiros a deixar de ser usados em pesquisas. Mas não podemos parar por aí. Argumentar apenas contra o uso de cães e primatas só reforma o especismo; afinal, eles são “como nós” ou muito próximos a nós, então os únicos animais que acabam “elevados” são aqueles com quem temos ligações especiais. Isso também é ser especista.

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Prêmio Top Blog, votação em curso!

selotopblog_300x250Segue até 9 de novembro a primeira rodada de votação da edição 2013 do prêmio Top Blog. Em 2010 e 2011, o Tubo venceu a categoria “Religião/blogs profissionais” pelo voto popular. Em 2012, não ficamos entre os finalistas, mas o Blog Animal, também da Gazeta, venceu sua categoria pelo júri acadêmico. Para votar no Tubo, basta você clicar aqui ou no banner ao lado. Cada conta de e-mail só pode votar uma vez no mesmo blog, mas nada impede que, com uma mesma conta de e-mail, você possa votar em vários blogs de sua preferência. Da mesma forma, você pode votar no Tubo mais de uma vez se tiver duas ou mais contas de e-mail. Basta preencher, no alto da página do prêmio, seu nome e e-mail. Você receberá uma mensagem com um link para confirmar seu voto. Também é possível votar pelo Facebook. Neste ano, teremos outros blogs da Gazeta do Povo concorrendo também; à medida que eles forem se inscrevendo, vocês saberão como votar em todos eles.

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