Bom Gourmet
Cozinha alemã: criatividade aliada à funcionalidade
Naquele início de novembro de 1989, uma imagem corria e emocionava o mundo: centenas de milhares de pessoas destruíam um imenso paredão de concreto que, por quase três décadas, fragmentara a bela capital alemã. Foi só mais um capítulo na longa história de reconstruções do país, que desde sempre viveu sob fogo cruzado – da ocupação da França napoleônica, ainda no século 19, à Guerra Fria. Durante muito tempo o Muro de Berlim separou dois povos, rotulando-os como comunistas orientais e capitalistas ocidentais. Nunca foi capaz, no entanto, de quebrar um sentimento que une os alemães do leste e do oeste: a racionalidade.
De fato, a história de qualquer país pode ser escrita com a tinta de seus traços culturais e gastronômicos. Neste campo, a culinária germânica é uma aula. Os alemães sofreram com a escassez de produtos e ingredientes imposta pelas batalhas constantes e agravada por um inimigo ainda mais difícil de superar: o inverno rigoroso (as temperaturas chegam aos – 20 graus C em muitas regiões). Tudo contribuiu para que o país buscasse alimentos práticos, fáceis de conservar e, claro, completos. E boa parte deles sobrevive não apenas em seu país de origem, mas onde mais os alemães exerceram influência. Curitiba, é claro, entra na conta.
Um dos grandes símbolos desse “racionalismo gastronômico” são as salsichas. Os embutidos feitos de carne bovina ou suína crua (curada ou defumada), gordura, ervas e temperos são alimentos práticos e duradouros que, no passado, eram ideais para a sobrevivência. Hoje, são parte fundamental da alimentação do país. O invólucro tradicional é comestível e feito da pele do intestino de animais, embora já se admita (e use com muita frequência) materiais sintéticos.
No Brasil, dois tipos de salsichas trazidos pelos imigrantes ainda hoje são famosos, a bratwurst (acinzentada) e a bockwurst (avermelhada e defumada). Há, no entanto, mais de 1,5 mil tipos em toda a Alemanha. São apreciadas grelhadas, fritas, cruas ou como acompanhamento em outros pratos. “Os molhos básicos são a mostarda o curry. Este último dá origem ao currywurst, que é a comida de rua mais tradicional do país. Trata-se da salsicha cortada em rodelas e temperada com o molho curry”, explica Gerson Jourdani, que comanda a barraca de comida alemã Currytiba Wurst, nas feiras livres de Curitiba. Como o nome denuncia, o prato é um dos carros-chefes de seu negócio. Um currywurst pode ser servido com batatas ou até no pão, como se fosse um cachorro-quente. “Há em Berlim um museu inteiramente dedicado a ele, o Currywurst Museum”, conta Jourdani.
A carne de porco é o alimento do dia a dia. Do animal, dois clássicos da região de Berlim e da Baviera (ao sul do país), o kassler e o eisbein, fazem sucesso também no Brasil. A tradução da palavra eisbein (“perna gelada”) indica sua posição na história. “Por muito tempo era costume guardar quantidades de joelhos de porco defumados para preparar nos meses de frio intenso, pois as pessoas não queriam sair de casa na neve atrás de alimentos”, explica a chef Selma Tonatto do Prado, neta de alemães que estudou as receitas servidas no país para aplicar ao cardápio do Bar do Alemão.
Na hora do preparo, o joelho é cozido por cerca de duas ou três horas até desmanchar. A gordura abundante deste corte garante energia, fundamental para a queima durante o rigoroso inverno. Como acompanhamento, o clássico é o famoso chucrute, um repolho azedo que ajuda na digestão da gordura, e as batatas, que aliviam a sensação de estufamento, garante Selma.
Tudo é pensado de forma complementar na cozinha clássica alemã. E não se admite desperdício. Do cozimento do eisbein, que libera muito colágeno, surge uma outra receita, comum na Baviera, o sülze. O prato é uma espécie de patê (lembra o mocotó), feito com o colágeno misturado a carnes e temperos, e depois cozido. “É servido de entrada, frio e com broas”, ensina a chef do Bar do Alemão.
Da mesma forma que o eisben, as bistecas suínas eram defumadas e guardadas. Na hora do preparo, bastava grelhar rapidamente e servir. É o kassler.
A carne de porco é servida pelos alemães até mesmo crua, em receitas como o mett – picada e misturada a temperos fortes. Há também a versão deste prato com carne bovina, chamada de hackepeter. Por aqui, os brasileiros preferiram, obviamente, popularizar a segunda versão. “Ele é temperado com páprica, azeite, conhaque. Na receita clássica, o hackepeter leva uma gema de ovo crua por cima. Na hora de comer, mistura-se tudo para dar liga. Aqui no Brasil, preferimos fazer sem a gema crua, que não é um complemento muito comum para as pessoas”, diz Alessandro Schimmel, chef e proprietário do Bar Schimmel, que serve um dos hackepeters mais respeitados de Curitiba. E não é mera semelhança: o hackepeter alemão é filho do steak tartare francês e pai da curitibaníssima carne de onça (que, diferentemente da versão alemã, leva carne moída em vez de picada).
O chucrute e a batata são acompanhamentos tão comuns na cozinha alemã por serem elementos abundantes. O primeiro é feito de repolho branco deixado na salmoura por semanas, até ficar azedo. Já as batatas são encontradas em diferentes tipos e, da mesma forma, têm variações de preparos. Podem ser assadas, salteadas ou servidas nas tradicionais kartofellpuffer, que podem ser traduzidas como panqueca de batata, mas que se assemelham na verdade à batata suíça – ela é ralada e frita. O acompanhamento mais comum é o purê de maçã, em uma combinação agridoce bastante apreciada pelos alemães.
Confeitaria
Uma frase atribuída ao filósofo prussiano Immanuel Kant diz que “a paciência é amarga, mas seus frutos são doces”. Certamente o intelectual se referia a questões existenciais mais profundas, porém (com toda a licença filosófica) cabe bem à cuidadosa e deliciosa confeitaria alemã, onde os preparos são longos e saborosos.
Na clássica apfelstrudel, torta de maçã surgida na Áustria e popularizada na Alemanha, a massa é trabalhada até que fique bem fininha. “Os alemães dizem que é preciso poder ler o jornal através da massa, de tão fina que deve ser. Aqui no Brasil as pessoas fazem com massa folhada, o que é uma adaptação. Não é a receita clássica”, explica Erika Zeilinger, proprietária e doceira da Erika Biscoitos Artesanais, confeitaria dedicada à pâtisserie alemã.
Da mesma forma, os biscoitos, tão comuns na gastronomia de lá, são bem trabalhados em formatos e sabor. Os recheios mais comuns são amêndoas, avelãs, nozes e frutas como ameixas pretas, damascos, maçãs e cereja – esta última imortalizada na receita da torta Floresta Negra. O bolo é uma das tradições herdadas no Brasil dos imigrantes alemães, assim como o pão de mel, que tem sua origem no lebkuchen, um bolinho macio surgido em Nuremberg, cidade importante da Baviera. “A diferença é uma base de farinha e água que sustenta o bolinho de mel na sua versão alemã”, diz Erika.
Veja algumas receitas:
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Serviço:
Peças/lojas
Camicado. Shopping Mueller – (41) 3074-8360
Passion. R. Des. Costa Carvalho, 333, Batel – (41) 3026-7419
Rocca Utilidades. Rua Francisco Torres, 780, Batel – (41) 3085-4174
Agradecimento
* As fotos foram feitas no Bar do Alemão e no Bar Schimmel.