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Livro desvenda a importância do chá no mundo
Ser condenado à pena de morte pelo roubo de chá. O que parece inimaginável em nossa cultura atual — sobretudo a ocidental — foi uma realidade na Inglaterra do século 16. Isso mostra a força que a bebida teve na construção de uma identidade cultural e social em todo o mundo. Alguns destes detalhes estão no livro Viagem ao Mundo do Chá: Tao Te Cha, em que a chef e pesquisadora Ina Gracindo levanta um relato histórico sobre a bebida.
A obra pode ser encontrada em diversas livrarias (como a Saraiva e a Cultura, em Curitiba), ao preço sugerido de De R$ 39,90. A chef conversou com o Bom Gourmet sobre alguns dos aspectos que transformaram essa bebida mítica em algo próximo de qualquer um no dia a dia:
Como começou a sua relação com esta bebida?
Minha relação com o chá é bem antiga, mais antiga que o tempo em que sou chef. Há 40 anos, fiz minha primeira viagem à Inglaterra e lá se deu esse encontro. Até ali, meu universo abrigava apenas café e descobrir o chá, camellia sinenses, foi surpreendente. Até então, o que circulava no meu mundo e era conhecido como chá era apenas infusão de ervas, frutas e folhas.
Como chef, o que pode falar sobre a complexidade dela?
A complexidade do chá é comparável a dos vinhos e champagnes. Você pode sentir em alguns o gosto de moscatel leve, como nos Darjeeling; em outros, um rascante de tanino mais agregado, como no Puer; e, ainda, um sabor defumado ativo em outros, como é no caso do Lapzang Souchon. A delicadeza e a personalidade do chá o torna um acompanhamento para qualquer refeição do dia. No ocidente tendemos a pensar no consumo dele à tarde, acompanhado de tortas e salgados, mas na China ele não apenas acompanha qualquer refeição como é bebido durante o dia todo, tal como água. Os efeitos saudáveis tão preconizados podem ser visto no dia a dia de uma população que, apesar de se alimentar basicamente de frituras, não é obesa.
As infusões são mais consumidas do que os chás propriamente ditos. A que isso se deve?
No Brasil essa é uma verdade, porque apesar de D. João ter comprovado que nosso solo e clima eram semelhantes ao chinês, vide o crescimento de frutas importadas que aqui cresceram bem e que acreditamos endêmicas, como a jaca e a carambola, houve pouco interesse comercial dos ingleses — a quem a corte banida de Portugal para o Brasil devia seu salvo conduto, digamos assim. Eu acredito que terminamos mais por questões políticas do que por gosto com o café ao invés do chá e consequentemente com o açúcar que faz com o café um melhor casamento do que com o chá indubitavelmente. Por outro lado tanto os índios quanto os africanos radicados aqui tratavam de seus males com as infusões, já as infusões mais adocicadas faziam vezes, como ainda fazem, de uma bebida socializante, economicamente mais viável na época do império, permitindo ares de sofisticação a uma população que sonhava com a “europeidade”, o chá no período imperial custava fortunas incalculáveis podendo ser consumido apenas pela aristocracia. Ou seja: ficamos distantes da cultura do chá, mas aos poucos vamos descobrindo essa maravilha porque as distâncias no mundo têm encurtado o que nos coloca em contato direto com produtos que antes não encontravam espaço de prova. O paladar não é apenas uma questão cultural, ele é educado e se torna um consenso ou não, eu acredito no chá como um consenso porque depois da água é a bebida mais consumida no mundo.
Por quê o chá foi imortalizado na Inglaterra?
O chá mudou a Inglaterra como um todo e foi um alicerce do Império. Basta imaginar que alguns gramas custavam o salário de vários serventes de uma casa aristocrática e que leis foram promulgadas considerando crime o roubo de chá de uma residência, que culminava em pena de morte! Não era o chá que era caro, mas os impostos cobrados – que encareciam cerca de mil vezes seu preço. O chá tem uma característica ritualística, seja ela religiosa, cultural ou, nesta época, principalmente aristocrática. O chá chegou à Inglaterra por volta de 1560, mas foi durante a regência da rainha Vitoria que conquistou a nação britânica. Durante a revolução industrial uma quantidade impressionante de artefatos e literatura foram confeccionados em torno da bebida. À época, a rainha tentava moralizar o país e uma campanha agressiva contra bebidas alcoólicas foi lançada, enquanto os rituais familiares foram incentivados e onde o chá cabia perfeitamente.
Qual a importância cultural do chá, principalmente nas comunidades budistas e taoistas – que primeiro o consumiram?
Os monges descobriram o efeito cafeína do chá, que os mantinha despertos durante as longas jornadas meditativas. Descobriram também a melhor forma de prepará-lo. Os melhores chás vêm das montanhas mais altas, onde há tanto o frio quanto o calor, além de água pura, necessários para beneficiar as folhas. Nessas montanhas distantes é onde se construíam os monastérios budistas. E daí vem o encontro. A água e sua temperatura para a infusão do chá são muito importantes e através da observação os monges foram compreendendo a sutileza no preparo da bebida. Eles ensinaram através de um ritual desde o plantio até a preparação e a finalização a leigos que visitavam os monastérios. O chá foi uma “materialização”, digamos assim, da prática de um ritual budista, onde a observação e concentração no momento presente é o fundamental.
O chá mudou comportamento do mundo ocidental? De que forma?
O chá mudou os costumes, a disposição interna das casas, as refeições, os modos, os guarda-roupas, o entretenimento e o comércio. Quando chegou à Europa, nada ficou imune à força e à sedução da bebida. Para a felicidade geral, ela é hoje um commodity a preço razoável para os simples mortais como nós!