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Em 1621, quando o teólogo inglês Robert Burton lançou A Anatomia da Melancolia, a depressão era encarada como qualidade da classe intelectual | Reprodução
Em 1621, quando o teólogo inglês Robert Burton lançou A Anatomia da Melancolia, a depressão era encarada como qualidade da classe intelectual| Foto: Reprodução

Se o homem moderno nasce sob o signo de Hamlet, ele pode muito bem ter sido gerado pela leitura da prosa convoluta e viciante do tentador francês Michel de Montaigne. Já se especulou que seria interessante imaginar que o livro que Hamlet lê em cena ("palavras, palavras, palavras") poderia ser um volume dos Ensaios. Montaigne, afinal, gozou de uma popularidade imediata na Inglaterra, graças à coloridíssima tradução de John Florio, um amigo de Shakespeare. Mas talvez seu eco mais selvagem, mais direto e pretensioso tenha vindo, não do bardo, mas de um teólogo deprimido de Oxford.

Em 1621, Robert Burton publica a primeira edição de sua grande obra. A Anatomy of Melancholy, desde então, não parou de cativar leitores no mundo inglês. Na verdade, quando a primeira edição de bolso foi publicada, um resenhista declarou que se tratava do lançamento mais importante de todos os tempos.

Superlativos mal podem dar conta da pretensão, do escopo e da capacidade de erudito e de prosador inventivo e encantador de Burton que, ao longo de cerca de 1,4 mil páginas, dedica toda sua capacidade analítica para esmiuçar, ilustrar, glosar, co­­mentar e expor todas as facetas do temperamento melancólico, de suas origens a seus frutos.

Mas se Burton demonstra claramente suas dívidas para com Montaigne na tentativa de escrever um livro sobre o mundo todo a partir da contemplação de sua própria mente, e também no estilo tergiversante, colorido e abarrocadamente espiralado que muda de assunto e abre novas estradas com o sem-cerimônia de quem abre meros parênteses, é na escolha inicial de seu tema, que seus caminhos mais divergem.

Montaigne era o homem que se dizia incapaz de viver sem alegria, sem leveza. Burton era o melancólico, em um tempo em que essa descrição cobria muito do que hoje chamamos de depressão. Um tempo, também, em que essa melancolia, além de estado de espírito, era moda, estilo, forma de intelectualização, de que Hamlet, aliás, era o melhor exemplo.

E é a sobreposição dessas duas características que rende ao livro-mamute de Burton seu tom e seu impacto mais característicos. Lê-lo é como assistir a um maníaco brilhante dissecando seu mal-estar diante do mundo com os gestos mais loucos, as tiradas mais inteligentes, as estórias mais alucinadas, enquanto te lembra, ao mesmo tempo, que está fazendo aquilo tudo, instalando todo aquele circo, para tentar entender porque é tão triste, tudo tão triste, ele sempre tão triste.

Se Montaigne consegue sempre parecer um nosso irmão no que temos, ou queremos acreditar ter de bom e estável (a ataraxia cética que ele buscou por toda a vida), Burton, seu irmão do mal, que talvez tenha se enforcado em seus aposentos, pode ser até mais adequado para os nossos tempos, ao mostrar o quanto pode nos falar diretamente ao coração e ao cérebro um melancólico das distantes brumas da Inglaterra renascentista.

Tradução da UFPR

Apesar de ter se transformado em um grande cult para escritores como Anthony Burgess, a obra de Burton ainda é pouco divulgada fora da língua inglesa. Seu tamanho e as insanas complexidades envolvidas em traduzir o inglês (e o latim!) de um prosador que escrevia como o mais requintado dos contadores de causos, misturando um tom oral e as mais altas finezas da prosa de seu tempo, afastaram durante séculos os tradutores.

É um imenso privilégio, as­­sim, vermos a Editora da Universidade Federal do Paraná lançar pela primeira vez em português o primeiro volume (de quatro previstos) de A Anatomia da Melancolia.

Mais ainda, a obra conta com uma tradução que não foge a nenhuma das dificuldades do original e dá conta de sempre responder à altura tanto em fluência quanto em sofisticação, gerando uma Anatomia brasileira de leitura extremamente satisfatória e, como deveria ser, divertida. Guilherme Gontijo Flores, professor de latim de UFPR de meros 27 anos de idade, produziu já o trabalho de toda uma vida.

Sorte nossa. Afinal, como escreve o próprio Burton, não há causa maior de melancolia que a desocupação (cabeça vazia, oficina do diabo, dizia a minha avó); não há maior remédio que se ocupar. Ele, o Guilherme, Adriano Scandolara e Luana de Conto, seus alunos que revisaram a tradução, já se ocuparam bastante. Tua vez.

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Serviço:

A Anatomia da Melancolia – Volume 1. Tradução de Guilherme Gontijo Flores. Editora UFPR, 266 págs. Preço: R$ 50.

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