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 | Osvalter Urbinati
| Foto: Osvalter Urbinati

A morte de um velho não é uma tragédia. Missao Okawa tinha 117 anos quando bateu as botinhas nipônicas, na última quarta-feira. Ela nasceu no século 19 e morreu no século 21. Num asilo. Sozinha. Na cadeira de rodas. E longe dos três filhos, dos quatro netos e dos seis bisnetos. Quando o tempo é muito, até o amor padece.

Sempre ouvi meus pais dizerem que não querem ser dependentes de ninguém na velhice. Deus o livre um derrame, um escorregão no banheiro, o estilhaçar de um baço ou de um fêmur. Concordo. Depender de alguém para continuar a viver é pior do que morrer.

No documentário Eduardo Coutinho, 7 de Outubro, o cineasta diz que só existimos de fato quando cultivamos um passado. Que assim nos tornamos menos inconsequentes. O que nos faz planejar o futuro. A velhice – que dá as caras na forma de reflexos vagarosos e nostalgia recorrente – é aquele momento em que temos mais memórias a compartilhar do que vida a percorrer. É por isso que velhinhos são bons contadores de história.

Fico imaginando os netos da senhora Missao em visitas ao asilo. Devem, em algum momento, ter sentido uma culpa inexplicável por mantê-la viva, num sofrimento silencioso – uma foto recente revela a decrepitude: a língua para fora, imexível; a pálpebra do olho direito caída, como se Missao Okawa fosse uma personagem dos Looney Tunes. Envelhecer tem limite.

O IBGE diz que o Brasil tem hoje 14,9 milhões de pessoas com mais de 65 anos (7,4% do total). Em 2060, o número de vetustos deve ser de 58, 4 milhões (26,7%). A longevidade é um privilégio conquistado. Ponha na conta da medicina, do avanço tecnológico, das mudanças de hábitos socioculturais. Há que se comemorar. Mas o prolongamento inescrupuloso da vida faz a morte parecer coisa de outro mundo.

Em um ensaio brilhante chamado Uma Vida que Merece se Encerrar, o jornalista Michael Wolff relata a convivência com a mãe, idosa e portadora de Alzheimer. Ele duvida que a continuidade da vida, naquela situação, seja boa para ela ou para quem quer que seja. “O que você faz com a sua mãe quando ela não consegue fazer nada – nada mesmo – para si própria? A questão, para começo de conversa, não é como você lida com as necessidades dela – é onde você a põe”, escreveu.

É um caso limite, mas todo mundo conhece alguém que conhece alguém com Alzheimer. Há quem veja na doença um desequilíbrio entre a saúde física e o vigor mental. Como se a cabeça já estivesse morta, enquanto o corpo, turbinado por comprimidos, footings e suco de couve com agrião, resista.

O papo (está muito tétrico?) lembra Paulo Leminski, que morreu de tanto viver. “Ninguém vivia pra sempre. Afinal, a vida é um upa. Não deu pra ir mais além. Mas ninguém tem culpa.”

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