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Dupla comemora cinquenta anos de amizade e parceria. | Marcelo Andrade/Gazeta do Povo
Dupla comemora cinquenta anos de amizade e parceria.| Foto: Marcelo Andrade/Gazeta do Povo

No palco da Ópera de Arame, agora totalmente reformada e nos trinques, havia duas cadeiras, dois violões e uma mesinha. Sobre ela, uma taça de suco de uva e outra com água e uma rodela de limão. O cenário, cru e simbólico, restringia-se a um varal com as bandeiras de todos os estados do país – sem querer, uma resposta ao comentário xenófobo de uma leitora, que pediu para que os baianos, “vindos de uma terra de bolsas e vales, deixassem o sul em paz.” Mas o que seria da música do seu país sem Gil e Caetano, cara leitora? Hein?

Sobravam ainda cinco ou seis lugares nas últimas fileiras quando “Back in Bahia” começou. Caetano fez a segunda voz, e Gil liderava a melodia. Estava levemente rouco.

(Ao meu lado, a moça que tomava uísque e insistia em mexer as pedrinhas de gelo a cada dois minutos, conversava sobre a amiga sobre a câmera do celular novo, que emanava uma luz estonteante).

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Em “Coração Vagabundo”, Gil voava solo até encontrar seu bróder mais à frente, num tom angustiado. “Tropicalia”, mesmo sem as cordas, os arranjos fantasmagóricos e a percussão tribal, de forma nenhuma soa oca. A verdade é que ainda tem um peso violento e uma atualidade que só persiste em grandes músicas.

Caetano e Gil falaram pela primeira vez após a linda “É de Manhã” (1963), conhecida na voz de Maria Bethânia. “É música mais antiga deste repertório”, disse Caê. “E agora vamos tocar a mais nova delas”, avisou, referindo-se à “Camélia dos Quilombos do Leblon.” Ela foi composta em meio à turnê europeia da dupla, que passou por 18 cidades em dois meses. O tema é o mesmo que fez com que Caetano e Gil tivessem importância não só na música popular, mas no posicionamento político que tomavam a partir de suas composições. “As camélias da 2.ª abolição virão”, cantaram eles, num afrossamba convidativo.

(A moça havia terminado seu uísque e agora conversava sem parar com a colega. Perguntava porque Gil, “aquele velho, não cantava”. Tinha também a mania irritante de cantar absolutamente todos os fins de frases, mesmo os que não conhecia. Desafinava sempre, e, a essa altura, já ganhava olhares de reprovação das filas da frente.)

Mas, veja, não é estranho que uma música de 2015 que fala sobre “o sofrer do povo do Brasil” e a “2.ª abolição” seja executada para uma plateia que pagou entre R$ 310 e R$ 950 para estar ali? Não é estranho que a cultura popular, em sua expressão mais imediata (a música), tenha se tornado um fetiche consumista?

“Sampa” ainda impressiona pela beleza de seu realismo bruto, e músicas assim são necessárias para lembrar que somos, inteiramente, um país de imigrantes, chegados ou partidos – viu, cara leitora?

Em “Drão”, Gil parecia enfim se divertir no palco, enquanto Caetano arpejava o violão e pavimentava a estrada para o amigo. Aí a luz baixou e Gil cantou, grave como a tempestade que viria horas depois, “Não Tenho Medo da Morte”, leitura otimista sobre o fim dos fins. O momento ainda era de Gil em “Expresso 2222”, e por isso Caê o espiava com atenção, manjava cada acorde do violão como se tivesse aprendendo a música na hora.

O final foi festeiro. “Nossa Gente (Avisa Lá)” perdeu o groove, mas se tornou deliciosamente pop. Alguns quiseram levantar para dançar, mas logo desistiram. Lá na frente, um braço comprido erguia o que parecia ser um LP. Gil também cerrou os punhos. “Andar com Fé” e “Filhos de Gandhi” mantiveram o clima – Caetano dançou e rebolou.

O bis previsto era “Desde que o Samba é Samba”, mas, não se sabe se pelo preço dos ingressos ou se pelo momento dos dois no palco, o que aconteceu foi um chorinho com quatro músicas: “Domingo no Parque”, “A Luz de Tieta”, “Leãozinho” e “Three Little Birds” (já com um punhado de gente a caminho de casa), de Bob Marley, regravada por Gil em 2002. Todos cantaram. Até quem não sabia nenhuma das anteriores e preferiu ficar no uísque ou no espumante.

Foi um show memorável por tudo que simboliza, por tudo que carrega em dois homens setentões e seus violões. Revisitamos nossa essência musical, de novo, e assim lembramos do que há de bom e reforçamos a cara feia com a música que não se importa com a história. O alto valor afetivo do show, entretanto, não impediu que momentos mornos tenham pontuado a apresentação, curtida em 50 anos de história. Em seu contexto, a noite também serviu para que Gil e Caetano, como bons vanguardistas, inaugurassem a sigla MPG: música popular gourmet.

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