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Encontrei há alguns dias o antigo livro de receitas de minha mãe. Um caderno fino de pouco mais de 80 folhas de papel almaço. A capa em cartolina amarela opaca traz no centro a anotação “Receitas doces e salgados”, que dá título e sentido ao volume, escrita em letra cursiva por caneta esferográfica verde.

Manchas antigas de óleo, ovo e outros insumos dão ao diário ao mesmo tempo um tom nostálgico do “avental sujo” da valsa de Francisco Alves, mas também uma dimensão real, como um souvenir de um campo de batalha. Não há indicação de data, mas cavoucando a memória, imagino que tenha sido produzido em uma tarde do começo da década de 1980.

Dá para perceber que a mãe, talvez no tédio de uma tarde solitária, talvez cansada da pequena bagunça das receitas que herdou de sua mãe ou prospectou nos encontros com outras amigas donas de casa nos “lanches” das tardes de terça-feira, ou ainda nos recortes dos suplementos femininos dos jornais de então, resolveu passar a limpo todas as fórmulas.

Lá estão, pois, anotadas com sua caligrafia rococó e com sua prosódia doce e prática, um tutorial bem-humorado de uma centena de doces e salgados. Desde clássicos, cujos nomes hoje são por demais agressivos, como Preto de Alma Branca ou Nega Maluca e todos os outros, inclusive a minha perdição: a torta de amendoim ou mindwin-kuchen no alemão gaiato dos nossos almoços de domingo à tarde.

Minha mãe morreu há dois anos na noite de uma segunda-feira banal como hoje. Nos dias seguintes, em meio à dor devastadora, folhear o caderno era a forma que me restara para me comunicar com ela. Com o passar dos dias, porém, a memória foi atuando para me (super) proteger da dor e da angústia contidas naqueles textos – narrativas do mais doce e perdido dos paraísos, quando havia uma rede de esperança para salvar até os mais irresponsável dos acrobatas.

Assim, o caderno foi se esconder na estante, já que a memória funciona, portanto, como uma mãe que tenta nos salvar das dores e medo. Lembranças antigas tendem a ser substituídas por outras mais novas. As histórias são trabalhadas, editadas. É impossível não colocar uma mão de tinta a mais a favor da história que gostaríamos de ter vivido.

Este acalento da memória é tão forte (e desta forma, maternal) que nos ilude a acreditar a achar que sabemos das coisas como elas são e como elas foram. O jornalista David Carr me ensinou que Descartes chamava isso (essa ilusão cognitiva) de “música sagrada do nosso interior”.

O golpe de folhear o caderno, dois anos depois, interrompeu a melodia. Pôs-me à frente da dor profunda e inapelável que a memória com seus truques tentara esconder. Eu entendi, no entanto, que não é por mal, as mães são assim mesmo: passam a mão em nossas cabeças até que pare de doer e, se é assim, eu na volta pra casa passarei no armazém: está lá escrito que é bem fácil e só vai “bolacha champagne, amendoim torrado, creme de leite, conhaque e açúcar”.

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