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 | Ricardo Humberto/Especial para a Gazeta do Povo
| Foto: Ricardo Humberto/Especial para a Gazeta do Povo

Ele acabou de completar 23 anos de idade.

Ele é “dono” de uma igreja, no interior da França, que lhe foi doada pela prefeitura, e que ele está transformando num centro cultural.

Quando ele tinha três, um amigo da mãe dele, que vinha da área da matemática, passou uns poucos minutos com o menino e perguntou pra mãe se ela por acaso estava ensinando cálculo diferencial e integral pro guri, porque ele estava fazendo umas perguntas extremamente complexas. (Fato bônus: no Brasil, ao menos, cálculo você só aprende na universidade.)

May Armstrong vem passando a vida assustada com o filho.

Quando ele tinha cinco, ela achou que de repente colocar o menino pra estudar piano podia dar uma variada nos interesses e nas obsessões que ele vinha demonstrando.

Eles não tinham um piano em casa.

O pobre menino decidiu aprender a ler partitura de uma vez (sozinho, rapidinho) e começou a compor direto no papel, sem instrumento. (Fato bônus: a imensa maioria dos músicos profissionais precisa, ou pelo menos ainda prefere, compor com um instrumento à mão.)

Ele aprendeu os princípios básicos envolvidos na composição de música, nessa época, lendo uma enciclopédia. Sozinho.

Óbvio que ele já sabia ler aos cinco. Dã…

Ele tem a reputação, aliás (comprovável no Youtube, claro), de conseguir ler praticamente toda e qualquer música de primeira, praticamente sem erros. Qualquer que seja o grau de dificuldade técnica e de complexidade formal da peça.

O fato 23 também é um fato sobre Kit Armstrong.

Quando ele estava com 13, uns amigos de Alfred Brendel lhe disseram que ele tinha que dar uma atenção àquele menino.

Brendel é um dos maiores pianistas do século 20, e talvez o mais intelectualizado deles.

Brendel não gosta de ter pupilos. Ele basicamente teve DOIS. Ambos grandes nomes do piano atual. Till Fellner e Paul Lewis. Brendel disse obrigado, mas não obrigado.

Levaram um CD amador pra ele ouvir o menino. Eles estão trabalhando juntos desde então. E lodo depois disso Brendel ligou para a Steinway & Sons, que fabrica os pianos mais respeitados do mundo e pediu pra mandarem um pra casa dos Armstrong.

Eles mandaram. De graça.

Armstrong já declarou que às vezes se considera mais próximo das galinhas que das pessoas.

O mundo dos prodígios pianísticos tende a se concentrar nos fogos de artifício. Os compositores mais “densos” não estão entre os favoritos de Lang Lang (que já tem 32) ou de Yuja Wang (28, e bem mais interessante que o pirotécnico Lang Lang). A própria Yuja Wang já disse, em entrevista, que espera chegar a Beethoven, por exemplo, quando estiver mais “madura”.

Armstrong, na avaliação de Brendel, nasceu para tocar Bach: o mais denso de todos. O mais maduro.

Armstrong só lançou até hoje um disco solo. Outro detalhe, essa falta de pressa, que o distingue do ramerrão dos prodígios. O disco dele tem Ligeti, morto em 2006, Bach, morto em 1750, e Armstrong, representado por uma Fantasia sobre o nome de Bach, peça mais que interessante.

O Ligeti tocado por ele é muito bom. O Bach tocado por ele é uma coisa de-ou-tro-mun-do. Eu ouvi e imediatamente lembrei da cena do romance “O Náufrago”, de Thomas Bernhardt, em que a carreira e a vida de um pianista são aniquiladas por uma simples audição da Ária das Variações Goldberg (de Bach) tocada por um jovem Glenn Gould. Ninguém que eu conheça, desde Gould (que morreu há mais de trinta anos), toca Bach de uma maneira tão original, tão profunda, tão pessoal e tão emocionante.

Bach, nas mãos dele, fala com você. Te diz tudo, e tudo ao mesmo tempo. É como ouvir a verdade, dita em quatro línguas ao mesmo tempo, e entender cada uma delas. E saber que o conjunto, simultâneo, é ainda mais profundo.

23: Bach é o começo e o fim de tudo.

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