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 | Miguel Nicolau/Especial para a Gazeta do Povo
| Foto: Miguel Nicolau/Especial para a Gazeta do Povo

Saiu esses dias o “Discurso da Servidão Voluntária”, única obra de Étienne de la Boétie, em nova tradução de Gabriel Perissé. La Boétie morreu aos 32 anos, em 1563, e talvez nem fosse conhecido hoje, apesar do conteúdo algo pré-anarquista do Discurso, se não tivesse tido um amigo. Um amigo que discutiu com ele suas ideias, e que ajudou inclusive a fazer esse tratado ser lido, mantendo o nome do autor vivo ainda hoje, num mundão tão diferente…

Michel de Montaigne dedicou a essa amizade o texto mais lido e talvez mais lindo dos seus “Ensaios”, que se chama, pura e simplesmente, De l’amitié: Sobre a Amizade.

Está neste ensaio uma das frases mais incríveis que a humanidade já produziu. Literariamente, em termos de “beleza”, e epistemologicamente, em termos de dar voz ao radical ceticismo de Montaigne, que mais do que qualquer pessoa tentou ensinar o mundo a duvidar de grandes explicações causais do tipo “isto-aconteceu-porque-aquilo”.

No meio do texto, tentando ainda lidar com a dor da perda do amigo, ele diz que se lhe perguntam por que gostava tanto de la Boétie, ele só sabe responder: porque era ele, porque era eu.

A frase é tão bonita que até o Chico Buarque já roubou pra fazer uma música bem lindinha chamada “Porque era ela, porque era eu”. Eu, particularmente, não canso de me maravilhar diante dela, como se fosse um sólido complexo e que se equilibra de alguma maneira improvável em cima de um piano. Ela fica ali. E eu olhando…

Dia desses, no meio de uma aula sobre o “Ulysses” eu fiquei alugando os alunos com uma teoria do amor, derivada do romance de Joyce. A ideia era que existe um amor que cobra satisfação: um amor que ama “porquê”, e que portanto é mais mal-humorado e corre mais risco de se decepcionar quando a pessoa amada de repente deixa de corresponder aos motivos, às expectativas. E existe esse amor do Montaigne. Que é porque sim, e pronto. Que não se explica.

Porque é ela.

E sabe uma coisa mais bacana, que nem todo mundo lembra? Montaigne escreveu o ensaio todo SEM essa frase. Ela foi acrescentada na margem, depois.

E recentemente estudos químicos provaram que a segunda metade foi acrescentada em outro momento ainda.

Ou seja: ele quis entender e escreveu um texto todo sobre isso. Como eu, aqui.

Voltou e confessou que no fundo era só “porque era ele”, la Boétie.

Mas não ficou satisfeito e, como eu, confessou que no fundo é “porque era eu”.

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