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 | Ilustração: Osvalter Urbitnati/
| Foto: Ilustração: Osvalter Urbitnati/

Fui a Mandirituba para visitar um saxofonista suíço. Mora só, numa pequena chácara. É viciado em guaraná Antarctica, usa camisas coloridas à Arnaldo Baptista e colhe limões do pé. Sua história envolve tribos indígenas colombianas e Thelonious Monk. Sairá neste caderno em breve, se tudo der certo e o editor quiser.

Entre outras questões inexplicáveis, trabalhar em jornal tem disso: falar ao telefone enquanto se escreve no Word. Movimento de ginástica laboral: o pescoço colado no ombro, as mãos esticadinhas no teclado e o olhar fixo na tela, que só perde o foco para algum cumprimento rápido – com sobrancelhas ou o rabo do olho (piscadelas com fins não amorosos). Mas às vezes viajamos.

Para se chegar a Mandirituba (do tupi manduri: abelha; e tyba: abundância), há que se passar por Fazenda Rio Grande, cidade com 6.740.337,32 metros quadrados. Um pouco à frente há Agudos do Sul, que antes se chamava Carijós. Por ali, o movimento é intenso. Caminhões serpenteiam na estrada fina e fazem todo o barulho; sentimos cheiro de madeira e deflagramos pontos de ônibus desolados. Assim é também perto de Quitandinha, cidade cujo nome é em homenagem a um hotel do Rio de Janeiro, uma pena, e não a uma quitanda simpática que porventura cresceu demais e virou vila. Lá, cometi meu primeiro (e até agora único) assassinato.

Tenho um amigo de infância, o Juliano. A avó de Juliano morava numa chácara em Quitandinha, onde costumávamos passar alguns dias das férias de verão. A casa ficava num terreno grande e ondulado. Havia campinho de futebol improvisado, gol feito de estacas de madeira (era preciso retirar as pinhas e as grimpas antes), um lago minúsculo e alguns pés de cana. Jogávamos bola até a lua virar refletor, chupávamos cana, mascávamos chiclete e mais à noite desfalecíamos após comer umas xepas, macias como nuvem, que saíam de um fogão à lenha providencial.

Piás de tudo, num dia nublado redescobrimos aquilo que se chama de estilingue. Nunca soube usar a arma. As pedras saíam vesgas e inofensivas. Costumávamos atirar numa antena de metal muito alta porque fazia um píííínnnn agudíssimo. Risos. Se um pardal voava, mirávamos nele mesmo assim porque era certo que não iríamos acertá-lo nunca. Ainda havia luz quando avistamos uma coruja gorda, de olhos amarelos brilhantes. Jazia imponente num arbusto, a meia altura. Aproximamo-nos. Municiei o estilingue com uma pedra pontuda, e tudo aconteceu de uma só vez: a precisão ímpar do disparo, o voo reto da pedra, o impacto certeiro, o tombo da ave, que se espatifou como um saco de arroz, a comemoração furtiva, o arrepender-se compulsivamente. Matamos.

O enterro foi ali, com a noite a cair. Ficamos com vergonha de nós mesmos. E com vergonha um do outro. Provavelmente choramos. O bicho sangrava no nariz. A pedra havia dividido o bico e dilacerado parte da cabeça. Com cuidado, depositamos a coruja no buraco, envolta numa manjedoura improvisada. Não comemos mais xepas. Havíamos crescido juntos ali, distraidamente.

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