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 | Osvalter Urbinati
| Foto: Osvalter Urbinati

Tenho saudade de gente que nem conheço. Por aqui, a memória funciona como uma segunda vida. Nem melhor, nem pior. É sempre uma opção válida para tempos difíceis. Atalho que se emaranha com o caminho oficial eventualmente, mas nunca o deixa para trás nem desgarrado à frente.

Por isso não entendo Buda. O presente já existe em sua totalidade, é intrínseco e inescapável. Dedicar-lhe sapiência e seriedade é quase uma redundância. Lembrei-me disso porque na última semana encontrei por três vezes uma mocinha Hare Krishna – não é a mesma coisa, eu sei, mas prega aquela ideia do “corpo único”, em constante movimento e por um objetivo em comum: somos também os elefantes e os pés de alface.

Ela tinha um terceiro olho na testa, piercing no nariz e um sorriso discreto e constante. Caminhava primeiro na XV, na frente do Bondinho, com livros pequenos em seus braços finos. “Já conhece o Hare Krishna?”

Uma dificuldade em minha vida é não saber dizer não. E não saber dizer não para uma mocinha com um terceiro olho na testa. “Estou atrasado”. Não era mentira, sempre estou atrasado.

No fim do dia a encontro na altura da Osório, sorriso permanente. Talvez tenha me reconhecido. Pegou meu braço, falou sobre os livros e quase implorou pela contribuição financeira que me valeria créditos espirituais: “Aceito cartão”.

Da última vez ouvia “Everyday is Like Sunday” nos fones, novamente na XV, e aí ela resolveu não insistir. Entregou-me somente o sorriso de gesso.

Queria ter tempo e paciência suficientes para roubar-lhe o tempo também.

Perguntar sua opinião sobre essa minha teoria maluca que ignora o presente em troca de memórias ou projeções.

Descobri há pouco que um cineasta meio que pensa assim. Ou ao menos pensou assim para realizar um de seus filmes mais importantes, “O Espelho”, que completa 40 anos agorinha. O nome de Andrei Tarkovski causa urticária instantânea em quem não suporta cinema autoral, mas seus filmes são poesias impressionistas e impressionantes.

“O Espelho” é feito de memórias de infância, mas está preso a um presente duro – o protagonista é um homem à beira da morte. Sem narrativa cronológica definida e recheado de flashbacks, o filme liquefaz o tempo, o embaralha e esculpe, dá-lhe outra dimensão e importância.

Fiquei feliz em poder compartilhar rapidamente com o russo meu sentimento de desilusão com o presente, com o tempo, “terrível e exigente problema”, como escreveu Borges.

O cinema nos faz menos loucos.

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