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O povo da música clássica se amarra em celebrar uma efeméride.

Dá uma mão até pra quem elabora os programas dos concertos por aí. Teve, por exemplo, uma enxurrada de Mahler na temporada 2010-11, porque o camarada teve a bondade de morrer aos 51, desemparelhando assim as comemorações de nascimento e morte.

Esse ano pode contar com carradas de Scriabin (cem anos de morte) e Sibelius (150 de nascimento).

Library of Congress

Tudo bem que são dois compositores que não me encantam (pão ou pães é questão de opiniães, como dizia o Guimarães Rosa). Mas, mesmo que fossem, esse ano eles iam ter concorrência, pesada, vinda do mundo do jazz.

Porque Eleanora Fagan, a Dama das Gardênias, Lady Day, a grande e única Billie Holiday nasceu em 1915. Pode não parecer, mas faz um século, milady.

Eu lembro direitinho o meu primeiro contato.

Eu tinha 15 anos. Um dia, na saída da escola, encasquetei que ia tirar de vez a teima. Matar a curiosidade e ouvir a tal da Billie Holiday. Passei no CD Club (que, pasmem, crianças, era uma LOCADORA DE CDs!) e peguei um disco.

Sozinho em casa de tarde, tomei um puta susto.

Eu achava que as cantoras de jazz seriam todas versões, digamos, da Sarah Vaughan velha, que eu tinha visto na TV quando ela veio pro Free Jazz Festival, em 87… (Jesus, como eu estou velho!).

Oooou seja:

Vozes aveludadas, afinações perfeitas, dubidubidu…

Pra te encurtar a história, eu esperava um saxofone. E o que me veio foi um trompete.

Uma soprano meio rachada, com um ataque direto, seco. Suingada como o diabo e cheia de blue notes, escorregando sempre uns quartos de tom pra baixo da nota que pegou originalmente.

A mulher, convenhamos, simplesmente não tem a melhor voz do mundo. Nem a mais sedutora.

A mulher não era um prodígio de técnica e de afinação.

Decepção.

Uns dias depois meu irmão, sempre ele, trouxe outro disco pra casa. Mais coeso, só de gravações do começo dos anos 30.

E eu fui chapando. “You go to my head”…

Dali em diante, passei décadas com aquela mulher.

Não, ela não é mais afinada do que você supunha de início. Não, a voz dela não é menos estranha do que você tinha achado de cara. E, aliás, fica mais estranha com o passar dos anos, o andar da carreira, o desgate da vida e das drogas.

Mais estranha, mais frágil, mais imperfeita.

Só que, pra começo, ninguém DIZ uma letra de música como ela.

Mas, acima de tudo, nenhuma outra cantora, em nenhum outro momento parece ter tido um acesso assim tão direto àqueles botõezinhos dentro da gente que controlam o nosso estado de espírito.

Se ela sorri, você sorri com ela. Se ela sofre, ah mozão, você sofre com ela.

Me acabei de chorar, incontáveis vezes.

Algumas cantoras de jazz, até hoje, podem ser variações do padrão saxofone aveludado. É só ver a aberração Diana Krall. Miss Fagan (“Baby to me”), no entanto, foi uma daquelas coisas que acontecem inexplicavelmente e vão continuar inexplicáveis. E inimitáveis (essa Peyroux que me perdoe).

Dizem que uma vez, depois de um recital de Glenn Gould (outra dessas idiossincrasias bizarras e mágicas), a plateia não aplaudia. Calada. Gélidos segundos silentes. E o pianista tenso nas coxias.

O produtor então falou, “espera: eles estão assimilando”. E logo irrompeu um aplauso delirante.

Billie Holiday é assim. Pode demorar pra você assimilar. Mas depois…

Ela toma posse de um pedaço da tua vida. “God bless the child”.

Parabéns, Lady, nesses primeiros cem anos.

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