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 | Felipe Lima
| Foto: Felipe Lima

Eis a cena: um Boeing 787 sobrevoa a cordilheira chilena ensolarada às 10 horas. Na poltrona 24A atravesso a leitura da segunda parte de Lolita da mesma maneira que a aeronave passa pelos Andes – com um pouco de turbulência. Ao meu lado, um casal chileno cuja soma de idades deve ser de uns 40 anos distribuídos equitativamente (diferentemente do enredo de Nabokov; que bom) tira fotos e grava vídeos munidos de um pau de selfie.

Tento me distrair de ambas situações lendo El Mercurio e aguardo ansiosa o serviço de bordo começar. Estou sempre pronta para beliscar alguma coisa, mas aeroportos me deixam mais ansiosa que o normal e fico faminta só de entrar na fila do despacho de bagagem.

Uma hora depois chega a bandeja, quase idêntica a que me entreteve no vôo de ida e, por isso mesmo, desanimadora.

Naquele dia, levantei às 5h40 para estar no aeroporto dali duas horas. Preparei uma xícara de Milo, um achocolatado instantâneo com pouco açúcar e alguns cereais, com água quente e cobri um pão pita um pouco maior que meu punho de abacate com sal e azeite, o famoso pan con palta chileno. Às 11h30, então, eu estava desejando comer qualquer coisa, até mesmo os classificados do jornal, mas não um croissant murcho e seco com (argh) margarina e queijo. Tirei o peito de peru do meio do lamentável sanduíche e desejei comer também as uvas alheias que vieram como sobremesa e que o casal ao lado mal beliscava. Enquanto tentava saber se teria outro lanche disponível, o pau de selfie passava por cima da minha cabeça para que os pombinhos tivessem um registro do belo céu argentino ou brasileiro.

A bem da verdade, não me ofendi nem me irritei quando a comissária me informou que só servem lanches vegetarianos quando se “chequea” com 48 horas de antecedência (ah, as cerimônias e rituais para viajar de avião!), mas quando retruquei em um espanhol de quinta categoria que, meses antes, escolhi a palavra “vegetariana” no campo “preferências” ao comprar a passagem pelo site da companhia aérea, minha voz saiu mais encruada do que eu gostaria. Sorri para contrabalancear minha atitude idiota e mascarar meu desconhecimento total do procedimento e agradeci a explicação. Se tivesse estudado o idioma, teria explicado à ela que minha experiência com voos é um pouco maior que a quantidade de aviões que já consertei na vida (cerca de 10 x 0, caso o leitor esteja curioso). Abri o pão novamente e enchi de geleia de damasco. Com menos cerimônia do que talvez gostariam meus companheiros de viagem, comi o sanduíche em poucos segundos enfarelando tudo ao meu redor e lambendo os dedos. Não arrotei.

A modesta refeição nunca será esquecida. Ao fazer a conexão de São Paulo a Curitiba em um Airbus A320, o toblerone andino deu lugar a nuvens brancas com cara de algodão doce. Todos olhávamos maravilhados para fora da janela, mesmo quando o avião chacoalhou consideravelmente, a ponto de fazer a aeromoça tirar sarro de seu desequilíbrio. E então, a aeronave embicou para baixo bruscamente, voltando à horizontalidade em breves segundos. Gritinhos nervosos, estômago na boca. O comandante não achou necessário explicar o que houve. O casal ao meu lado (descendentes de japoneses, pessoas polidas e silenciosas) apertou as mãos e suspirou aliviado. Larguei Lolita e pensei: pelo menos aquele croissant não foi minha última refeição.

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