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Conto

Romance do Bordado e da Pantera Negra

Raimundo Carrero e Ariano Suassuna. Iluminuras, 64 págs., R$ 29.

Em uma carta a Milena Jesenská, Franz Kafka lhe transmite uma descoberta inquietante: "O verdadeiro espólio só se encontra nas profundezas da noite, na segunda, terceira, quarta hora". O espólio — não só aquilo deixado pelos mortos (fantasma), mas aquilo que se arranca do inimigo em uma guerra (violência) — constitui algo que, embora esteja sob nossa posse, na origem não nos pertence. É uma boa metáfora para os espantos que se alastram durante a noite quando, entregues ao sono, somos invadidos por imagens imprevistas. Como uma pantera negra, esses elementos nos assaltam e constrangem — e, depois, não temos o direito de dizer que não nos pertencem.

A atmosfera de invasões e de usurpação que compõe os pesadelos costura os dois relatos espelhados — conto e folheto — que compõem o Romance do Bordado e da Pantera Negra (Iluminuras). Conto de Raimundo Carrero, folheto de Ariano Suassuna, eles permaneceram esquecidos (enterrados) durante 50 anos, até serem redescobertos na internet pelo agente literário Stephane Chao. Muitas hipóteses explicam esse esquecimento. A primeira, sua relação sanguínea com o Movimento Armorial, que Suassuna lançou em 1969, no Recife, não para dar continuidade ao regionalismo, mas para ultrapassá-lo com uma arte erudita arrancada do chão.

Meio século depois, um injusto esquecimento cerca o Movimento Armorial. A leitura dos textos agora relançados, porém, nos ajuda a desvendar algo a respeito dessa denegação. As duas histórias — a mesma história relatada por vozes distintas — tratam de sentimentos selvagens que, em geral, preferimos abjurar. Subitamente, eles voltam à luz. Outro nordestino célebre, Graciliano Ramos, foi certeiro ao dizer: "O mundo é empastado e nevoento. Súbito uma coisa entre mil nos desperta a atenção e nos acompanha". De repente, arrancado do esquecimento, em dois relatos perdidos por cinquenta anos, o movimento retorna.

A história narrada duas vezes, para as mentes pragmáticas de hoje, talvez pareça exagerada e inverossímil. Ocorrem-me aqui, contra essa sensação, as palavras de Maurice Blanchot a respeito do lugar da imantação — esse tipo de atração em que o fascínio se mistura com o encantamento. Diz, em seu "O livro por vir": "Não é por contar acontecimentos extraordinários que a narrativa se distingue do diário. O extraordinário também faz parte do ordinário". O caráter "fantástico" dos relatos que Carrero e Ariano nos reapresentam não elimina, ao contrário fortalece, seus laços com a realidade. A realidade não é simples. Perseguir a realidade, Blanchot sugere, é tratar "daquilo que não pode ser verificado, daquilo que não pode ser objeto de uma constatação ou de um relato". A ênfase aqui está na palavra "relato": fazer ficção não é espelhar o mundo, mas perseguir o indizível. E que, só por isso, não cessa de nos assombrar.

Completa, ainda, Blanchot: "A narrativa é o lugar da imantação, que atrai a figura real para os pontos em que ela deve se colocar, respondendo ao fascínio de sua sombra". Em outras palavras: se queremos verdadeiramente nos aproximar da realidade, não podemos deixar de incluir suas sombras. Trafegando entre o preciso e o impreciso, personagens como Simão Bugre, o vaquejador Elesbão e a silenciosa Conceição atestam isso muito bem. Funcionam como imagens. Em sua origem, a propósito, a palavra "armorial" se refere ao livro em que se registram os brasões da nobreza. Não se trata aqui de um brasão único — totalitário e monolítico — mas, em vez disso, de brasões diversos, que se complementam. A realidade é tensa — como o bordado em que Conceição trabalha enquanto espera pela volta de Elesbão e seu cavalo Visageiro. A realidade é assombrosa — como o dragão com língua de fogo que ela se põe a tecer.

Vejam quantos caminhos já se descerraram em minha mente após a leitura do livro que Carrero e Ariano. Trata-se, antes de tudo, da força das imagens — o que, aliás, é uma característica dos brasões — conjunto de figuras e de ornatos que compõem a alma de uma família, ou de um Estado. Quando não é simples reflexo das coisas do mundo, mas, em vez disso, se oferece como chama que acende o imaginário, a ficção encontra seu verdadeiro destino: o de emprestar vida a coisas que, sem ela, e embora vivas ainda, guardam a aparência de mortas. É na própria narrativa que o mundo se encorpa e se amplia. Voltando a Blanchot: "O além da obra só é real na obra, é apenas a realidade própria da obra". Mais do que o universo de que Carrero e Ariano seriam simples fotógrafos, o que nos sacode é a arbitrariedade do retrato, com suas distorções, suas fisgadas e seus rasgões. Existem muitas coisas no mundo que só aparecem se a língua as captura. Talvez todas as coisas.

Sob essas visões, se agita a força do desejo. Mandado pela "velha mãe do Diabo", Simão Bugre — na letra de Ariano — pergunta a Conceição: "A senhora tem algum/ forte desejo insaciado?" No bojo das aparições, é o desejo que se move. É a suspeita de uma traição que move, do mesmo modo, a primeira reação de Elesbão. Por fim, com seu punhal alumiado, ele sai à caça do Bugre. "O punhal é um espelho/ e Simão Bugre é a fera", continua a narrar Ariano. Na letra de Carrero, a atmosfera é ainda mais turva. A própria narrativa — espessa e resistente — serve como imã, mas também como obstáculo. "O mato geme. Existe também a presença das almas penadas, das incendiárias do inferno e do Cão-Coxo dos dentes de lâmina". Seres fantásticos, em vez de desmentir o real, o adensam.

Quando Simão Bugre surge, "o cheiro do enxofre substituiu o cheiro brando das árvores", prossegue Carrero. Os dois relatos se misturam e se potencializam. Quando a morte entra em cena, é o próprio bordado que se encorpa em matéria. Ainda Carrero: "O dragão do bordado esturra forte, luta como se saísse das entranhas da mulher. Um filho não parido". Também a fantasia se levanta do real. Com isso, é o humano que, queimado pelo fogo da ficção, emerge. Volto a Graciliano: "Não confunda instrução com leitura de papel impresso. Os médicos estudam menos nos livros que abrindo barrigas". Ideia que resume o livro duplicado que acabo de ler.

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