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Historiador Mikhail Melnichenko mostra um dos diários do período stalinista | Natalia Kolesnikova/AFP
Historiador Mikhail Melnichenko mostra um dos diários do período stalinista| Foto: Natalia Kolesnikova/AFP

Tatiana Panova segura uma fotografia tirada em 1923 de seu tataravô, um estudante soviético como qualquer outro com um futuro brilhante pela frente, mas que morreu 16 anos depois em um campo da Sibéria, vítima dos expurgos stalinistas.

Tatiana, de 25 anos, conseguiu estabelecer um vínculo com o homem, Alexander Yakovlev, falecido meio século antes de seu nascimento, graças ao diário que deixou e que sua família conservou com zelo. “É muito estranho”, afirma. “É uma pessoa que viveu há 100 anos...”.

Tatiana admite que por momentos pareceu “um pouco chato”. “Escreve com detalhes, todos os dias, a que horas se levanta ou se deita!”.

O engenheiro elétrico também relatava suas dívidas, sua relação difícil com sua namorada da época e suas atividades esportivas.

Por isso, um grupo de historiadores jovens se interessou pelo diário de Alexander Yakovlev, assim como por outros de seus contemporâneos, e planejaram copiá-lo e publicá-lo on-line. “Todos os diários pessoais têm valor”, explica um deles, Ilia Veniavkin, de 35 anos.

“Não acreditem que o diário de seu familiar não tem interesse porque ele não era um intelectual famoso ou um cantor, ou porque não viveu a morte de Stalin ou a coroação de Nicolau II”, afirma.

A era stalinista

Esse período compreende os anos de 1927 a 1953 na antiga União Soviética, sob o comando do ditador comunista Josef Stalin.

Com vários colegas, Veniavkin participa do projeto Projito (“O que se viveu”), fundado em 2015 pelo historiador Mikhail Melnichenko.

Este professor universitário de 35 anos teve uma inspiração depois de ter publicado um livro sobre piadas soviéticas, para o qual recorreu aos diários pessoais como principal fonte.

Em dois anos, Projito já recolheu mais de 600 diários íntimos russos inéditos do período stalinista (1927-1953), transcritos por cerca de 350 voluntários e publicados on-line.

Uma vez por mês, alguns dos historiadores e voluntários envolvidos se reúnem para falar dos diários. A maior parte deles tem cerca de 20 anos e utilizam computadores e telefones de última geração para estudar os documentos amarelados, agora digitalizados.

“É uma espécie de mudança social”, analisa Ilia Veniavkin, que destaca que cada vez mais russos se interessam “de repente” por estes diários íntimos, que contêm “todos os detalhes da vida de pessoas que, às vezes, não têm nenhum laço” com eles.

Um ato perigoso

Os diários, escritos a mão, frequentemente são difíceis de decifrar, como ocorre com o de Alexander Yakovlev.

Ainda assim, a repetição de certos temas ajuda os voluntários: muitos diários contêm poemas ou falam profusamente de acontecimentos culturais, como a estreia de um filme ou a inauguração de uma estátua. A fome e a vida nos apartamentos superlotados da época também são temas frequentes.

“Nos anos 1920, os diários pessoais eram muito ‘sinceros’ porque as pessoas não sabiam o que ia ocorrer nos anos 1930”, explica Mikhail Melnichenko.

Mas, mais tarde, algumas páginas foram arrancadas ou cobertas com tinta preta. No auge dos expurgos stalinistas, chamados de “anos de terror”, de 1935 a 1949, toda crítica contra o regime podia levar o autor a ser preso ou executado.

No diário de Lev Nikolaiev, em 18 de janeiro de 1937, é possível ler: “Não há um dia sem que saiba da prisão de um comunista conhecido (...) Prisão após prisão... o que significa isso?”.

Mas, “às vezes, temos a impressão de que os diários dos anos 1930 foram escritos sabendo que o leitor podia ser mal-intencionado, e que se o diário caísse em mãos de investigadores, eles teriam acreditado na lealdade absoluta de seu autor”, afirma Melnichenko.

“Em geral, as pessoas que escreviam diários eram conscientes de que isso era perigoso”, explica Ilia Veniavkin.

O historiador coloca como exemplo o diário de um adolescente cujos pais foram detidos durante os anos de terror: só escreve três linhas sobre o momento em que a polícia secreta stalinista, o NKVD, vai buscar seu pai. Quando chega a vez de sua mãe, o adolescente se limita a escrever: “Foi mais fácil que da última vez”.

“Enfrentamos o silêncio”, conta Ilia Veniavkin. “Não devemos interpretar o que escreveu, mas o que parece evidente e sobre o que ele manteve em silêncio”.

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