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 | Ricardo Humberto/Especial para a Gazeta do Povo
| Foto: Ricardo Humberto/Especial para a Gazeta do Povo

Dia desses, subindo a rua de casa, achei que tinha te visto passando.

Não vou mentir, tá? Dei uma bela de uma acelerada, dobrei à direita, desci uma quadra inteira até emparelhar com você, ali prestes a atravessar, na calçada do outro lado.

Confirmei que você era você.

Confirmei que você estava legal.

Dei meia-volta e vim pra casa.

Podia ter parado pra te cumprimentar. Mas não fazia sentido. Não tinha porquê. Você nem me conhece. E nem teria motivo pra me conhecer.

Podia ter pensado em inventar qualquer pretenso motivo de te abordar (tipo essa crônica aqui?)…

É bem verdade que a gente já conversou (tudo bem, esse “conversou” aí atrás devia estar entre pilhas de pares de aspas) acho que umas duas vezes na rua. A primeira, uns vinte anos atrás, no supermercado, na verdade.

“Só queria te agradecer pelos livros.”

Acho que foi tudo que eu consegui dizer.

Um aperto de mão e estamos conversados. Estivemos.

A segunda, mais recente, depois de eu já ter até resenhado uns livros teus aqui na Gazeta, foi igualmente forjada: eu correndo atrás de você pra te abordar, do meio do nada. Pra te fazer uma pergunta. Que fica aqui entre nós. Que fique.

Nesses quase trinta anos em que eu te leio, faz já mais de vinte que eu sei quem você é. Assim, de te ver na rua. Foi uma amiga de faculdade quem me apontou primeiro a tua figura. E por mais que eu considere no fundo um ligeiro desrespeito essas duas vezes (teve alguma outra?) em que eu te parei, acho que a bem da verdade esse histórico ainda está curitibana e vampirianamente adequado.

No geral tentei manter essa distância, por mais que em certos períodos tenha te visto tipo toda semana. Passando na rua. Almoçando nos mesmos lugares e tal e coisa…

Nessa última vez, quando eu te stalkeei só pra dar meia-volta sem te abordar, foi porque fazia meses que não te via. Desculpa.

Feio dizer que eu estava preocupado?

Noventa anos não é pouca coisa, né?

Né?

Nem sei.

Pra você parece que é, afinal.

Fui lá conferir do outro lado da rua só pra ter certeza, e tive. Vampiro não fica fraco enquanto continua à caça, enquanto segue se servindo do que alimenta cada um de nós quando está bem escondido e nos repugna e envergonha quando exposto.

Vampiro não faz noventa anos.

Não envelhece.

E me agrada PACAS essa ideia. Do livro novo a cada ano. Da permanente atividade. Da lucidez total e dessa permanência.

Já disse em outros cantos, já disse aqui mesmo, e hei de repetir o quanto for necessário. Pode haver (pão ou pães, afinal, continua sendo questão de opiniões) por aí livros tão relevantes quanto os teus.

Claro.

Mas não acredito que haja em Pindorama um escritor mais relevante, mais importante, mais sólido, urgente e incrível.

Porque a tua verdadeira obra é essa contínua produção. Essa acumulação de temas, ideias, linguagem, repetição, reelaboração, culto, cultura e cultivo.

Porque você nunca vai escrever um último livro, já que ainda está escrevendo o primeiro. O único.

Porque noventa anos (te disse parabéns, afinal?), porque décadas dessa produção ainda servem só pra deixar todo mundo esperando. (Será a falta que faz o sangue?)

Esperando te ver na rua mais uma vez, passo firme, coluna ereta, olho límpido.

Esperando saber que tudo continua em ordem.

Que Dalton Trevisan anda à espreita.

Feliz aniversário.

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