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 | Marcos Labanca
| Foto: Marcos Labanca

26,3 milhões de toneladas de alimentos são desperdiçadas anualmente no país.

Em The Great Disruption (A Grande Ruptura, ainda sem tradução no Brasil), o ambientalista australiano Paul Gilding afirma que o mundo não suportará o crescimento e o consumo nos moldes de hoje, e enfrentará graves consequências, como escassez de recursos naturais e crise na distribuição de alimentos. As mudanças climáticas e países afundados em dívidas são, para ele, alguns exemplos da crise do consumo. Além disso, a desigualdade social que ajuda a alimentar padrões de luxo, em médio prazo, ocasionarão insatisfação e conflitos por parte das nações mais pobres.

A confusão entre o ser e o ter, dilema já tratado por vários filósofos, é a primeira coisa a se pensar no momento de refletirmos sobre o consumo desenfreado, acredita o coordenador do curso de Filosofia da PUC-PR, Jelson Oliveira, que lançou neste ano Sabedoria Prática (Editora Champagnat), obra que fala sobre como a filosofia pode nos ajudar a ter uma vida mais controlada. Oliveira explica que o esvaziamento do homem das coisas essenciais – como a amizade, as relações afetivas duradouras e o tempo para nós mesmos – nos conduz para a supervalorização do ter. "Na busca desenfreada pela ideia da felicidade, encontramos a via fácil e as promessas que o consumo faz."

A relevância das posses, esclarece o professor do Departamento de Sociologia da Universidade de São Paulo (USP), Ruy Braga, acentuou-se com o padrão de consumo na produção em massa desde o fim da Segunda Guerra Mundial (1939-1945). "Trata-se de uma necessidade do sistema capitalista que se mundializou e precisa realizar gigantescas quantidades de valor excedente. Assim, formou-se uma certa ideologia pós-moderna em que o mais importante é a propriedade."

Outro problema pontuado por Oliveira é o fato de o homem não ter uma relação de engajamento e cuidado com as coisas, que acabam sendo facilmente descartáveis. "Se eu quero um celular é para falar com as pessoas que eu amo. Mas esqueço disso neste afã da posse, e ele vira só o objeto."

O endividamento das famílias, tanto nos países desenvolvidos que enfrentam uma grave crise econômica, como no Brasil, é mais um sinal claro da insustentabilidade das compras em excesso. "Aqui, um padrão apoiado no crédito e não na poupança nacional empurra as famílias trabalhadoras para postos de trabalhos mais precarizados e sub-remunerados", ressalta o professor Ruy Braga, que lança na semana que vem um livro sobre o assunto, A Política do Precariado: do Populismo à Hegemonia Lulista (Editora Boitempo).

No mundo contemporâneo, Jelson Oliveira também lembra que a gula foi favorecida. "Se pegar todas as éticas até hoje, a gula sempre foi um vício. Isso está em Aristóteles, Socrátes e todos os autores cristãos. O que aconteceu conosco na via do consumo? A gula foi favorecida, virou quase um conselho."

Reprimidos

O crescimento econômico do Brasil, a melhora na renda das famílias e as baixas taxas de desemprego fizeram com que emergisse no país uma parcela da população conhecida como a "nova classe média", que passou a consumir itens a que não tinha acesso anteriormente. Além disso, incentivos do governo, como a redução de impostos para carros, móveis e linha branca possibilitaram que famílias de baixa renda pudessem finalmente comprar bens essenciais. Obviamente, essas medidas ajudaram a alavancar o consumo e mostraram que existia – e ainda existe – uma demanda de consumidores reprimidos no país.

Por isso, não é tão fácil falar em consumo consciente para pessoas que passaram anos sem uma geladeira em casa, acredita a cofundadora e diretora-executiva da Aliança Empreendedora, Lina Useche Kempf, organização sem fins lucrativos que trabalha com projetos de geração de renda. "Não é justo dizer a um catador de material reciclável que ele não precisa de uma televisão de tela plana. Eles querem acesso ao que todo mundo tem. São pessoas que ficaram muito tempo passando vontade, e agora podem comprar coisas para suas casas com as quais seus pais ou avós nem sonhavam."

Mudanças

Direcionar a vida para outras coisas que não o consumo é uma saída para repensar o ato de comprar. "Quem já experimentou, viu que não traz tanta felicidade assim", crê Jelson Oliveira. A simplicidade, segundo ele, deveria ser o foco. "E o que é simplicidade? Confundimos o simples com pobreza, e não é isso. Não precisamos quebrar todas as nossas coisas. O que temos de fazer é retirar das coisas o prazer delas." O sociólogo Ruy Braga aposta na recriação de um sentimento de pertencimento pelo acesso a um direito social efetivo ao alcance de todos. Algo que, para Braga, a "hegemonia neoliberal e de individualismo destruiu". "Somente assim a pulsão consumista poderá ser substituída por outra pulsão, a da emancipação coletiva."

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