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| Foto: Felipe Lima/

Suicídio chama menos atenção que homicídio. O desgosto de uma pessoa com a própria vida é menos ameaçador do que a fúria dela contra os outros. Faz sentido que, em carnificinas como a de Newtown, em Connecticut, quase três anos atrás, a imprensa se concentre nas vítimas – na morte dolorosa e absurda de crianças, e na dor terrível que os pais e todos nós temos de suportar. É coerente que nós lamentemos a aniquilação causada por um assassino como Adam Lanza e não a aniquilação dele próprio.

Porém, para entender um assassino suicida, é preciso prestar atenção no suicídio, porque ele é o motor de ações dessa natureza. Adam Lanza cometeu um ato de ódio, mas parece que a pessoa que ele mais odiava era a si mesmo. Se quisermos combater a violência, precisamos começar combatendo o desespero.

Muitos adolescentes sabem o que é odiar a si mesmo; e alguns expressam insegurança de maneira agressiva contra outras pessoas. Eles são desnecessariamente ríspidos com os pais; eles dirigem depois de beber, ignorando o perigo que representam para os outros; eles tratam seus pares com desdém gratuito. Quanto mais profundo for o ódio contra si mesmo, mais provável é que ele se manifeste como agressão. Os atos de um assassino suicida são uma versão grotescamente aumentada da raiva adolescente.

Em um trabalho que se tornou clássico, o psiquiatra Karl Menninger diz que, no suicídio, três desejos coincidem: o de matar, o de ser morto e o de morrer. É óbvio que Adam Lanza teve esses três impulsos e, embora seu pior crime tenha sido um desejo de matar muito maior que o da maioria dos suicidas, a primeira tragédia dele foi contra si próprio.

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A culpa conforta muito porque uma situação pela qual alguém ou alguma coisa pode ser culpada é uma situação que poderia ter sido evitada – então é possível prevenir numa próxima vez. Depois do massacre em Newtown, culparam os pais de Adam Lanza e o divórcio deles; culparam a síndrome de Asperger de Adam e uma possível esquizofrenia não diagnosticada no sistema escolar; culparam as leis de controle de armas; a violência dos videogames, dos filmes e da música; culparam o efeito imitador gerado por outros tiroteios em escolas; e uma provável lesão cerebral que equipamentos melhores serão um dia mais capazes de mapear.

Defensores dos que sofrem de doenças psíquicas argumentam que as pessoas tratadas por vários distúrbios mentais não são mais violentas que a população em geral; enquanto que um público furioso insiste que nenhuma pessoa sã seria capaz de cometer atos assim. É uma discussão essencialmente semântica. Um estudo realizado com médicos em Harvard deu a eles alguns históricos editados de suicidas e pediu que fizessem diagnósticos. A pesquisa descobriu que os médicos, quando não foram informados de que os pacientes tinham cometido suicídio, detectaram doenças mentais em apenas 22% do grupo. O porcentual aumentou para 90% quando o suicídio foi incluído no perfil do paciente.

Em relação ao 11 de Setembro e aos ataques em Benghazi, na Líbia, persiste a ideia de que profissionais treinados e competentes poderiam ter evitado o pior. Mas análises retrospectivas têm utilidade limitada e a suposição de que podemos livrar nossas vidas de horrores desse tipo é uma ficção otimista.

Na pesquisa para o meu livro “Longe da Árvore”, entrevistei os pais de Dylan Klebold, um dos perpetradores do massacre de Columbine em Littleton, no Colorado, em 1999. Num período de oito anos, convivi com os Klebolds por centenas de horas. Comecei o trabalho convencido de que, se eu cavasse fundo o suficiente nas personalidades deles, conseguiria entender por que Columbine ocorreu – seria capaz de reconhecer o estrago dentro do ambiente familiar que acabou gerando uma catástrofe. Em vez disso, passei a ver os Klebolds não só como inocentes, mas como pessoas admiráveis, morais, inteligentes e bondosas que eu ficaria feliz de ter como meus pais. Conhecer Tom e Sue Klebold não tornou mais fácil entender o que aconteceu. Tornou Columbine ainda mais desconcertante e me obrigou a admitir que é impossível conhecer as pessoas.

Quando me perguntam por que os Klebolds não entraram no quarto de Dylan e encontraram as coisas que ele escrevia, por que não o seguiram até o local onde escondeu as armas, respondo que comportamentos intrusivos assim provocam e não previnem tragédias e que todos os pais precisam navegar entre o que a psicanalista britânica Rozsika Parker chama de “a Cila invasiva e a Caríbdis negligente”. Se a pessoa conduziu bem a situação só fica claro mais tarde. Nós gostaríamos que os Klebolds e que Nancy Lanza tivessem sido mais invasivos, mas é possível encontrar outras famílias em que atitudes assim foram profundamente destrutivas.

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Os perpetradores desses assassinatos terríveis se enquadram no que se pode chamar de espectro Loughner-Klebold. Parece que todo mundo sabia que tinha alguma coisa muito errada com Jared Loughner, que feriu a parlamentar Gabrielle Giffords e matou seis pessoas num evento em Tucson, no Arizona, em 2011.

Num e-mail meses antes do tiroteio, um colega estudante escreveu: “Nós temos alguém na nossa turma que é instável mentalmente e ele me dá muito medo. Ele é uma daquelas pessoas de quem você vê a foto no noticiário, depois que entrou na sala de aula usando uma arma automática”. O problema era óbvio e ninguém fez nada a respeito.

Como um vestido vitoriano de luto, a atenção do público serve para reconhecer que nada está normal e para que aqueles que não estão consumidos pela tristeza possam ouvir os que estão.

Ninguém via nada de errado com Dylan Klebold. Depois de ter sido preso por roubo, Klebold frequentou um programa qualquer que usava testes psicológicos básicos que, segundo a mãe dele, não encontraram nenhuma indicação de que ele era suicida, homicida ou deprimido. Algumas pessoas que são claramente perturbadas não recebem tratamento nenhum e outras mantêm suas vidas interiores em segredo total; muitos assassinatos seguidos de suicídio são cometidos por pessoas que se encontram num ponto qualquer no meio do espectro, como parece ser o caso de Adam Lanza.

O que devemos fazer? Eu estava em Newtown na semana passada, um dos muitos comentaristas convocados por programas de tevê. Entrando na cidade, senti como se o ar fosse uma gelatina; era muito difícil avançar em meio à dor que pairava no ambiente. Enquanto aguardava nos trailers da CNN e da NBC, comendo rosquinhas e compartilhando tristezas com outros convidados enquanto aguardávamos nossos cinco minutos diante das câmeras, fui fulminado por uma dicotomia perturbadora.

Pessoas que estão lidando com uma perda desse tamanho exigem a dignidade de saber que o mundo se importa. Como um vestido vitoriano de luto, a atenção do público serve para reconhecer que nada está normal e para que aqueles que não estão consumidos pela tristeza possam ouvir os que estão.

Quando parei num restaurante no centro de Newtown, não senti hostilidade entre os moradores e o resto de nós, mas senti um abismo palpável entre nós. Precisamos conhecer Adam Lanza e não podemos; queremos conhecer as vítimas dele e também não podemos.

Num metafórico post de blog, chamado “Eu Sou a Mãe de Adam Lanza”, uma mulher em Boise, no estado de Idaho, que claramente ama seu filho, mas que tem medo dele, se preocupa que ele vire um assassino. Muitas famílias americanas vivem num estado de negação sobre quem são seus filhos; outros veem problemas que não sabem como suportar. Uns argumentam que aumentar os atendimentos de saúde mental para crianças acabaria sobrecarregando um orçamento governamental já inchado. Mas nos custaria muito menos, em dólares e em angústia, do que um sistema em que eventos como os de Newtown acontecem.

Robbie Parker, pai de uma das vítimas, veio a público depois de 24 horas do tiroteio e disse à família de Adam Lanza: “Não posso imaginar o quanto essa experiência é difícil para vocês, e saibam que nossa família, nosso amor e nosso apoio vão para vocês também”. O espírito de comunhão dele, para rebater o ódio, é evidência de um coração iluminado. E também serve para um propósito prático.

Minhas experiências em Littleton indicam que aqueles que veem a tragédia como algo que envolve todo mundo – incluindo as famílias dos assassinos – foram capazes de se curar, enquanto aqueles que combateram o luto com ódio foram mais assombrados pelos eventos nos anos que se seguiram. Raiva é uma resposta natural, mas buscar vingança tentando culpar os outros, incluindo as famílias dos assassinos, é contraproducente no fim das contas. Aqueles que precisam compreender para aceitar os fatos condenaram a si mesmos a um sofrimento interminável.

Nada que pudéssemos aprender com Columbine teria evitado Newtown. Temos de reconhecer que o cérebro humano é capaz de produzir horror, e que saber tudo sobre o perpetrador, sua família e suas experiências sociais e o mundo que ele habita não responde a questão “por que” de nenhuma maneira que resolva o problema. Na melhor das hipóteses, esses dados ajudam a criar boas políticas públicas.

Os Estados Unidos são o único país do mundo em que armas de fogo são o principal meio para o suicídio. Em 2010, 19.392 americanos se mataram usando armas. É o dobro do número de pessoas assassinadas por armas no mesmo ano. Historicamente, os estados com as leis de controle de armas mais frouxas tiveram taxas de suicídio significativamente maiores do que os estados com leis mais severas. Alguém que precisa ir atrás de uma arma tem tempo para pensar melhor e não usá-la, enquanto uma pessoa que consegue agarrar uma num momento passional, não.

Precisamos oferecer para nossas crianças melhores exames e entender que os atendimentos de saúde mental funcionam melhor não num modelo de vacinação, em que uma única intervenção contundente elimina um problema para sempre, mas num modelo de dentística, em que um cuidado constante é necessário para prevenir o problema.

Entender por que Adam Lanza matou só é possível se entendermos por que ele desejou morrer. Assim estaremos mais preparados para ver além do mal que nos causa horror e para se concentrar na compaixão que acaba com ele.

Andrew Solomon é autor dos livros “O Demônio do Meio-Dia – Uma Anatomia da Depressão” e “Longe da Árvore”, os dois publicados no Brasil pela Companhia das Letras.
Tradução Irinêo Baptista Netto.
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