• Carregando...
 | Osvalter Urbinati/
| Foto: Osvalter Urbinati/

Não é nem um pouco divertido ser filha de psicólogos. Para início de conversa, você vive cercada de livros do tipo “A Anatomia da Melancolia” ou “Eu Estou Ok – Você Está Ok”. O que outras famílias chamam de amor, a sua chama de “Teoria do Apego”.

Você sofre com a análise excessiva de seus pais e também disputa atenção com os pacientes deles, cujos problemas são geralmente mais urgentes (e sempre mais lucrativos).

Seus pais são pagos para ouvir estranhos chorarem. A única vantagem mesmo é que acaba se tornando extremamente fácil fazer com que os pais de seus amigos sintam pena de você e às vezes isso se reverte em doces de graça.

Tive quatro psicólogos na minha família. Só um deles, meu pai, de sangue. Os outros três entraram em minha vida por causa da morte prematura da minha mãe, o que resultou em uma série de casamentos, divórcios, brigas por custódia e outros desastres bem intencionados.

“Anatomia” exibe ruínas de verdades

Melancolia é um termo meio fora de moda. Assim como o hábito de chamar a lua ou o sol de “planetas”

Leia a matéria completa

Em meados dos anos 1980, eu morava parte do tempo com minha mãe adotiva (a segunda mulher do meu pai, que me adotou, mas acabou se divorciando dele) e o segundo marido dela. Para infelicidade geral, ambos recebiam pacientes em casa (a quarta terapeuta, caso você ainda esteja contando, era a terceira esposa do meu pai).

Tratava-se de uma velha casa de três andares na Filadélfia, daquelas que o chão de madeira range toda vez que alguém dá um passo. Os pacientes entravam e saiam pela porta da frente no primeiro andar, que consistia em apenas uma pequena sala de estar e cozinha onde as sessões aconteciam. Minha única tarefa era manter silêncio absoluto. E eu levava isso bastante a sério, quase como uma vocação.

Sempre antes da primeira sessão do dia eu apanhava meus apetrechos como um soldado a caminho do front – um copo d’agua, um pedaço de pão ou uma banana, alguns livros, canetinhas e papel – e demarcava um lugar confortável na minha cama. Precisava ser confortável, pois era lá que eu passaria vários períodos de 55 minutos.

Os tablados de madeira rangiam tão alto que eu não podia nem sair da cama para ir ao banheiro, mesmo porque eu acabaria inconscientemente dando a descarga, algo inadmissível. Eu me tornei obcecada com a possibilidade de que tudo poderia ser feito de maneira mais silenciosa. Qual o jeito menos barulhento de se virar as páginas de um livro? Quão silenciosamente a gente consegue beber água? Eu tentava respirar de um jeito inaudível até mesmo para mim.

Osvalter Urbinati

Não me ocorria na época que tudo isso era esquisito. Na verdade, eu gostava. Quando era pequena, detestava todas aquelas atividades em grupo de que crianças normalmente participavam.

Eu passava o recreio lendo e isso chamava a atenção das outras crianças, que vinham me perguntar por que eu estava lendo, como se você precisasse de um motivo. Isso me irritava e interrompia minha leitura, então passei a me esconder dentro de um daqueles pneus enormes que eles deixam nos playgrounds. No que eu chamava de “pneu da leitura”, eu era invisível, impossível de ser perturbada. Eventualmente alguém subia no pneu – para fazer uso dele da maneira certa: brincando –, mas ainda assim não percebiam que havia uma pessoa espremida lá dentro.

Fui levada inúmeras vezes a psicólogos mesmo sem querer (motivo: morte prematura da mãe). Odiava cada um deles e deixava isso bem claro nas sessões. Eles chamam isso de “transtorno opositivo desafiador”. Como não podiam me xingar, eles sempre respondiam me encarando daquele jeito sonolento característico da classe, impossível de diferenciar se eles estão pensando ou pegando no sono. Eu apenas encarava de volta, de cara feia.

Os amigos dos meus pais também pareciam ser todos terapeutas. Com exceção de um casal (oi, David e Wendy!), eu achava que eles eram todos um bando de malucos, e me incomodava que seus pacientes não fizessem a menor ideia de como aquelas pessoas – para quem eles confidenciavam seus segredos mais pessoais – se comportavam em jantares íntimos. (Hoje sei que é possível ser tanto um convidado amalucado quanto um psicólogo estável.)

Divã de Freud.Creative Commons

Como eu presenciava os bastidores daquilo tudo, durante boa parte da minha vida adulta não quis fazer terapia, muito embora eu precisasse. Decidi lidar com meus problemas à moda antiga: enchendo a cara. Com o tempo, um tipo de tristeza movediça frustrou até mesmo esse tratamento clássico.

Hoje, pago para mãe de outra pessoa me ouvir chorar. Às vezes me pego pensando a respeito dos filhos da minha terapeuta, se eles sentem pelos pacientes dela o mesmo que eu sentia pelos pacientes dos meus pais: um misto de curiosidade, empatia e ressentimento.

Minha psicóloga atende em uma clínica de verdade. Pelo que vejo na sala de espera, ela atende pacientes jovens e bonitas. Sempre me pergunto que tipo de problemas jovens mulheres bonitas têm na vida? Distúrbios alimentares? Seriam os problemas delas mais interessantes, mais sérios que os meus? Será que minha terapeuta gosta mais delas do que de mim?

Ela nunca vai dizer.

Existe uma coreografia confortante numa sessão de terapia. O modo como minha terapeuta sempre estica a cabeça para fora da sala para chamar a próxima paciente nunca perde a graça.

Eu entro e tudo está exatamente onde deveria estar – os mesmos livros nas prateleiras, os papéis sobre a mesa. Se a paciente anterior estava deitada, haverá um lenço de papel no lugar onde a cabeça repousou. Minha terapeuta vai descartá-lo. Com bastante frequência, o assento da poltrona Eames de couro preto onde me sento – ela senta numa idêntica, o que deve significar alguma coisa – ainda está quente.

Às vezes me pergunto que tipo de regressão doentia estou encenando. Quando Freud escreveu sobre transferência, ele disse que o paciente “não se satisfaz em considerar o analista pelo que ele é de fato”, mas sim “o vê como uma recompensa, uma reencarnação de alguma figura importante de sua infância ou de seu passado”.

Osvalter Urbinati

Será que estou pagando alguém para ser minha mãe porque ela está morta? Ou será porque minha mãe adotiva fazia o papel da mãe dos outros enquanto eu me escondia no andar de cima?

Aquilo que eu disse no começo, que não há nada de divertido em ser filho de psicólogos, é mentira. Mais tarde na vida você descobre que conhece tanta terminologia do assunto que pode tanto entreter quanto assustar seus amigos dando a eles diagnósticos de araque.

Sem contar que “A Anatomia da Melancolia” (leia mais ao lado) é na verdade um livro muito bom. E a experiência de desaparecer durante a sessão de terapia dos outros foi formadora: todo escritor deveria ter a sorte de poder se trancar num quarto com um monte de livros para ler por horas a fio.

Porém, aperfeiçoei uma habilidade que é inútil, de um ponto de vista prático. Invisibilidade é de longe o pior dos superpoderes. Sinto falta dos dias em que meus talentos eram mais requisitados. Queria que existisse um programa de tevê em que o ganhador fosse aquele que conseguisse passar o maior número de horas imóvel e em silêncio, porque eu ganharia.

Meus vizinhos não apreciam o fato de eu conseguir respirar silenciosamente, porque ninguém em sã consciência presta atenção numa coisa dessas. Para minha infelicidade, não existem “pneus de leitura” em festas de adultos.

Li recentemente em algum lugar que esses pneus liberam gases tóxicos. Mesmo assim, me sinto nostálgica daquela sensação de me acomodar dentro de um, enquanto alguém sobe em cima dele, completamente alheio à minha existência.

Jessica Lamb Shapiro é autora do livro de memórias “Promise Land – My Journey Through America’s Self-Help Culture” (Simon & Schuster), inédito no Brasil.
Tradução de Miguel Nicolau.
0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]