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Time de futebol da Alemanha comemora a vitória na Copa do Mundo 2014.  | Albari Rosa/Gazeta do Povo
Time de futebol da Alemanha comemora a vitória na Copa do Mundo 2014. | Foto: Albari Rosa/Gazeta do Povo

O mundo e, em particular, a Europa enfrentam uma crise migratória que já está sendo considerada a mais grave desde a Segunda Guerra – ainda mais agora, depois dos atentados em Paris. 

Nesse contexto, poderia um comentário com que se depara ao acaso, num recorte de jornal de quatro anos atrás, iluminar a saída do impasse? Pois leia-se o que dizia a notinha publicada no caderno de esportes da Gazeta em junho de 2011:

“O craque da Alemanha tem sangue turco, o capitão inglês vem de Serra Leoa, a seleção francesa é dominada por africanos, um filho de um suíço com uma japonesa joga pelos Estados Unidos. O Mundial sub-17, que começa hoje, no México, mostra que o futebol do futuro tende a ser mais aberto para seleções transnacionais e multirraciais do que o atual.”

Se é impreciso ao falar em “futebol do futuro” – o futebol tornou-se, já a partir da década de 90, irremediavelmente “transnacional” e multicultural (“multirracial” é um termo infeliz sob vários aspectos) –, o pequeno texto que ressurge na exploração arqueológica de alguma gaveta parece estranhamente acenar ao presente, senão com uma solução, no mínimo com a lembrança promissora da vocação do futebol para o multiculturalismo.

Apesar de arena por excelência da chamada globalização, ou precisamente em reação a isso, o mundo da bola acolhe e estimula pertencimentos locais, comunitários; e, ao relegar o nacionalismo – discurso primordial na discriminação a imigrantes – a segundo plano, até pela presença maciça e fundamental de jogadores estrangeiros ou naturalizados nos elencos de clubes e seleções, essas comunidades futebolísticas, torcidas incluídas, se convertem em potenciais ilhas de tolerância no debate público sobre imigração na Europa. 

(O que, claro, não deve implicar que se feche os olhos às manifestações de racismo e perversões neonazistas abrigadas em algumas dessas mesmas torcidas.)

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De fato, na atual crise, algumas das primeiras demonstrações de solidariedade aos refugiados, sírios e afegãos em sua maioria, vieram de clubes e torcedores: estes em ação coordenada nos estádios, onde exibiram mensagens de boas-vindas, aqueles com medidas mais concretas de integração dos recém-chegados, oferecendo-lhes de donativos e abrigo temporário a ingressos para jogos como forma de confraternização. A onda começou na Alemanha e foi replicada em outros países – até Cristiano Ronaldo entrou em campo para uma partida do Real Madrid levando pela mão o menino que, semanas antes, no colo do pai em fuga, tinha ido ao chão pela rasteira de uma cinegrafista insana, numa das cenas mais chocantes do noticiário sobre a crise dos refugiados.

Autor da célebre teoria das “comunidades imaginadas”, originalmente pensada como explicação da emancipação simbólica de territórios coloniais, no século 19, o historiador britânico Benedict Anderson defendeu que as nações se consolidam a partir da emergência de um fenômeno próprio das modernas sociedades capitalistas: a leitura simultânea, numa língua comum, de jornais e romances por um número crescente de concidadãos. 

O gesto sincronizado da leitura de jornal – e veja-se a semelhança com o torcer por um time – os lançaria numa “realidade” imaginada que é a refração de acontecimentos de interesse comum no raio de alcance da língua de determinada comunidade. 

A Europa que hoje tenta acolher algumas centenas de milhares de refugiados, e em particular a mobilização de seus clubes e torcedores nessa missão, é terreno fértil para a construção permanente de comunidades imaginadas que são também locais. 

No dia a dia dessas comunidades, o futebol se expressa mais em termos de “comunitarismo” do que de “nacionalismo”, conforme observa o historiador Hilário Franco Júnior: “O nacionalismo futebolístico tem recuado à medida que cresce a percepção de que a emoção e a mobilização cotidianas estão nas comunidades [locais, regionais] mais do que no denominador comum a elas que é a nação”.

“No futebol atual, há cada vez mais jogadores criados como imigrantes. É cada vez mais o que acontece na Suíça e em todos os outros países [da Europa].”

“Bom campo de observação das ambíguas relações comunitarismo–nacionalismo é a Espanha”, lembra Franco Júnior. “Na Espanha”, comenta o sociólogo escocês Richard Giulianotti, “as ‘nacionalidades’ de Castela, da região da Catalunha e basca (sem falar da identidade cultural distinta na Andaluzia e na Galícia) são furiosamente expressas no âmbito do clube, mas mantidas em segredo para permitir que esses diferentes jogadores representem o país (ou excepcionalmente a França).”

As relações ambíguas entre comunitarismo e nacionalismo estão longe de ser fenômeno novo: em março de 1953, Espanha e Bélgica se enfrentaram na cidade de Barcelona diante de 45 mil pessoas; em maio do mesmo ano, 60 mil foram assistir ao Barcelona jogando contra o Athletic de Bilbao.

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A Catalunha é, de fato, um caso já clássico de ambiguidade e sobreposição de pertencimentos e comunidades. Conforme observa Franklin Foer, em seu excelente “Como o futebol explica o mundo”: “Os estrangeiros podem se tornar catalães porque a ideologia catalã sustenta que a cidadania é adquirida, e não herdada. Para tornar-se catalão, deve-se apenas aprender a língua catalã, desprezar a Espanha castelhana e amar o Barça”. Pátria sem Seleção e nação sem Estado, a Catalunha parece se sentir já muito bem representada por seu clube de maior sucesso, enquanto em Copas e Eurocopas assume a torcida pela Espanha – com maior ou menor fervor segundo o número de convocados do Barça.

Amistoso entre Inglaterra e França na última terça-feira (17) em LondresDarren Staples/Reuters

“Nova cultura”

O que se costuma esquecer com facilidade, na discussão sobre imigrantes e seu direito a uma nacionalidade “por adesão”, por assim dizer, é que simplesmente não existe algo como uma primeira nacionalidade “por natureza”. E, ainda que essa crença arraigada ganhe sobrevida pelo que resta dos nacionalismos, cada vez mais precisará se conformar a realidades multiculturais – como a da Suíça, talvez o laboratório mais radical para esse tipo de experiência, quando se trata de sua representação futebolística.

Às vésperas da Copa de 2014, em entrevista à revista “France Football”, o técnico da seleção do país, Ottmar Hitzfeld (um alemão, diga-se de passagem), constatava: “Na nossa seleção, há uma grande mistura de culturas, de mentalidades, de origens e de religiões. Essa diversidade é certamente uma verdadeira riqueza, pois todos esses ingredientes fertilizam a equipe”. “Mas”, prosseguia Hitzfeld, “temos de dar conta de reunir isso tudo. O desafio, para um treinador, é chegar a encontrar uma homogeneidade, um espírito coletivo. Não podemos ser bem-sucedidos simplesmente como time. É preciso alguma outra coisa.” 

Ao comentário do entrevistador de que, de início, a mudança de perfil dos jogadores da seleção criou reticência no país, que talvez não estivesse preparado para uma “revolução” do tipo, Hitzfeld responde que “isso é normal num país que fala três línguas e onde muda a mentalidade conforme a região. Os jogadores da seleção são jovens, não são conhecidos, e tinham [têm] outra nacionalidade ou outras origens. Foi um grande desafio encontrar uma harmonia”. Um desafio que era da própria comunidade imaginada nacional. 

Por fim, o treinador reconhece o potencial de interpretação, para além das quatro linhas, das mudanças mais ou menos recentes (dependendo do país) na formação de várias seleções europeias: “No futebol atual, há cada vez mais jogadores criados como imigrantes. É cada vez mais o que acontece na Suíça e em todos os outros países [da Europa]. Isso se reflete nas seleções nacionais. Esses jogadores com frequência são talentosos, e trazem alguma coisa de diferente, uma nova cultura”.

Esse algo “diferente”, essa “nova cultura”, parece intuir Hitzfeld, diz respeito principalmente à adaptação de indivíduos que, com suas diferentes caraterísticas técnicas e capacidades táticas (no caso dos praticantes do futebol), passam a ser avaliados como iguais – jogadores, simplesmente, mas poderiam ser torcedores também – em vez de por categorias como “suíço”, “imigrante” ou “refugiado”. 

As comunidades futebolísticas mostram, assim, que a saída da crise migratória na Europa pode não ser tão difícil: basta que se acolham os novos cidadãos pelo que são, por seus talentos e por sua disposição a partilhar valores comuns – afinal, parece claro que, modernamente, o que deveria definir uma nacionalidade é menos o direito nato (ou quem sabe divino...) e mais a capacidade de imaginar-se parte de uma comunidade: vivenciar a língua comum, entrar no coro da multidão, aderir ao grito da torcida.

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