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Cena de “O Natal de Charlie Brown”, produzido em 1965. | Reprodução
Cena de “O Natal de Charlie Brown”, produzido em 1965.| Foto: Reprodução

Charles M. Schulz tinha uma resposta padrão às milhares de cartas que chegavam a ele perguntando se os personagens de “Peanuts” (no Brasil, “Minduim”) um dia apareceriam na TV ou no cinema. Por quase dez anos, o cartunista respondia aos fãs de Charlie Brown, Snoopy, Lucy e Linus (que retornam aos cinemas brasileiros mês que vem na produção em 3D “Snoopy e Charlie Brown – Peanuts, o Filme) de forma bastante explícita: “Há coisas mais importantes do que desenhos animados”.

A implicância do pai dos “Peanutscom animações só mudou 15 anos após o surgimento das tiras, quando os personagens já eram publicados em 750 jornais. Em junho de 1965, Schulz foi convencido pelo produtor de cinema Lee Mendelson a aceitar a proposta do canal CBS para uma animação da turma. A encomenda, na realidade, era da agência de publicidade da Coca-Cola, que buscava uma novidade para o especial de Natal daquele ano.

Assim, há 50 anos, bancada por uma multinacional, mas com discurso contrário ao consumismo, ia ao ar em 9 de dezembro de 1965 o primeiro desenho animado dos “Peanuts”. Intitulado “O Natal de Charlie Brown”, foi visto em 15,5 milhões de lares, o equivalente à metade da população dos EUA à época. No roteiro, o garotinho Charlie Brown é escolhido para organizar a apresentação de Natal da escola e tenta mostrar aos amigos o verdadeiro espírito da data.

  • No traço de Miguel Nicolau.
  • Ilustração de Osvalter Urbinati.
  • Versão de Benett para o personagem de Schulz.

O desinteresse de Schulz por animações, entretanto, começou a ser quebrado em 1963, quando Mendelson conseguiu dois feitos. Primeiro, que Schulz concedesse entrevistas para um documentário sobre “Peanuts”. Para convencê-lo, o cineasta apelou a outro documentário seu, sobre o jogador de beisebol Willie Mays, astro do San Francisco Giants e ídolo do cartunista. Mas o grande feito de Mendelson foi ter o aval do cartunista para produzir uma animação curta para o documentário. Isso desde que fosse feita por Bill Melendez – uma exigência de Schulz, que admirava o trabalho do desenhista por não ter “disneyficado” seus personagens quando Snoopy e companhia participaram de um comercial da Ford em 1959.

Bill Melendez, nascido José Cauahtémoc Melendez no México e criado no Texas, havia acabado de abrir o próprio estúdio em Los Angeles em 1963 quando começou a parceria com Schulz e Mendelson. Na Disney, participou dos clássicos “Fantasia”, “Bambi”, “Dumbo” e “Pinocchio”. Na Warner, leva o crédito como um dos criadores de Pernalonga, Patolino e Gaguinho. Ele tinha experiência de sobra para cumprir a determinação de Schulz de não alterar os personagens. A única abertura, que virou o grande legado de Melendez em “Peanuts”, foram as cores fortes, já que a turma até então só havia sido publicada em preto e branco.

Outra concessão de Schulz foi na trilha sonora. O cartunista não gostava de jazz, preferia temas clássicos, em especial Beethoven, que o personagem Schroeder não cansa de tocar. Mas ficou satisfeito quando Mendelson sugeriu um jazz de piano rápido e ritmado que levava o nome do casal de irmãos de “Peanuts”.

A música “Linus and Lucy”, de Vince Guaraldi, virou não só uma das principais identidades de “Peanuts”, como um clássico pop. “Não tenho dúvida de que muito do sucesso que tivemos foi por causa dessa música”, reconhece Mendelson no documentário “Vince Guaraldi – O Maestro de Menlo Park”.

Jazz

O primeiro contato do produtor de “Peanuts”, o cineasta Lee Mendelson, com a obra de Vince Guaraldi, que também era de São Francisco, foi durante a filmagem de um documentário sobre Charles M. Schulz. Ao cruzar a Ponte Golden Gate em 1963, o cineasta ouviu a canção “Cast your Fate to the Wind”. Como o DJ não anunciou o nome do músico, Mendelson ligou para o crítico de música do “San Francisco Chronicle”, que o informou se tratar de Vince Guaraldi, pianista virtuoso do circuito da Bay Area.

Sacada de Schulz foi dar liberdade aos criadores do desenho

Na biografia “Schulz & Peanuts”, Mendelson lembra da liberdade que ele, Melendez e Guaraldi tinham para criar, como a ideia de pôr crianças, e não adultos, dublando os personagens. “Foi aí que o Schulz foi esperto. Ele deixou que fizéssemos a coisa”, afirma Melendez no livro. O trabalho do quarteto fluía tão bem, que Melendez e Guaraldi faziam tabelinhas. O desenhista costumava mandar os roteiros em storyboard para que o pianista pudesse entender as cenas e compor. Mas muitas vezes o itinerário era o contrário. Guaraldi gravava determinadas improvisações que fazia nas apresentações em clubes noturnos e as enviava a Melendez. O resultado era tão bom que o chefe da animação sugeria a Schulz esticar o roteiro e incluir mais cenas para aproveitar as melodias.

“Cast your Fate to the Wind” foi lançada no compacto “Black Orpheus”. Com a composição, que tem influência de “Samba de Orfeu”, trilha de Tom Jobim para o filme “Orfeu da Conceição”, o pianista venceu o Grammy de melhor composição de jazz em 1963. “Algo me dizia que era aquilo que eu precisava para ‘Peanuts’: uma música ao mesmo tempo infantil e adulta”, declarou Mendelson.

Com esse argumento – que também foi usado para convencer Schulz –, o produtor entrou em contato com Guaraldi. Duas semanas depois do primeiro encontro, o pianista ligou dizendo que precisava tocar algo que havia acabado de compor. Era “Linus and Lucy”. “Pode ser surreal, mas pensei na hora ‘essa música vai afetar minha vida’”, recorda Mendelson no filme “Vince Guaraldi – o Maestro de Menlo Park”.

Predestinação certeira que se confirma na relação que o próprio Schulz teve com a canção até morrer, em 2000, aos 78 anos. Jean Schulz, viúva que hoje dirige o museu em homenagem à obra do cartunista na cidade de Santa Rosa, na Califórnia, lembra que o marido constantemente elogiava Guaraldi por ter capturado a essência das crianças que ele desenhava. “Quando o Sparky [apelido de Schulz] entrava em um restaurante ou qualquer lugar em que houvesse um piano, sempre tocavam Linus and Lucy para ele”, recorda a viúva.

Schroeder

Na trilha sonora da estreia de “Peanuts” na TV em 1965, Guaraldi compôs um tema natalino leve para a introdução. Mendelsen gostou, mas achou que nesse caso valia a pena a música ter letra e compôs um pequeno poema para “Christmas Time is Here”, cantado por um coral de crianças na cena em que os personagens aparecem patinando sob o gelo.

“Linus and Lucy” é executada pela primeira vez na história de “Peanuts” pelo garotinho Schroeder ao piano, quando Charlie Brown comanda o ensaio dos colegas para a apresentação de Natal, na cena clássica em que Snoopy dança com as crianças no palco empunhando uma guitarra.

Sobre bigodões e trombones

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A partir desse momento, a música vira marca da obra animada de Schulz, presente nos 60 episódios de meia hora, cinco especiais de uma hora e cinco filmes – incluindo “Snoopy e Charlie Brown – Peanuts, o Filme” –, além de boa parte dos 400 comerciais.

O disco é até hoje um dos dez mais vendidos de especiais de Natal nos EUA. Em 2014 chegou à marca de 3,4 milhões de cópias vendidas desde 1991, quando o sistema SoundScan passou a monitorar a venda de produtos audiovisuais nos Estados Unidos e Canadá. O álbum “A Charlie Brown Christmas” levou o Vince Guaraldi Trio ao hall da fama do Grammy e o disco está catalogado como de interesse cultural e histórica na Livraria do Congresso dos Estados Unidos.

Até 1976, quando morreu vítima de enfarte fulminante aos 47 anos e a produção dos desenhos teve de ser suspensa, Guaraldi assinou composições para todos os episódios de “Peanuts”, ao ponto de deixar de se apresentar em turnês e viver exclusivamente das músicas das animações. Em 1981, quando o desenho voltou ao ar, o pianista David Benoit passou a compor para a turma de Charlie Brown com a mesma pegada do pianista original.

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