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 | Brunno Covello/Gazeta do Povo
| Foto: Brunno Covello/Gazeta do Povo

1 - À procura de uma mãe

Os meninos tiveram de despertar mais cedo, os olhos sonolentos metidos nuns rostos pálidos. Dispostos em fila no pátio, frei Cássio Vieira à frente, especulavam o motivo da convocação. Suspeitas eram lançadas aos cochichos ao se aproximar a Toyota Bandeirante. Não tardaram a descobrir os motivos da visita inesperada. Instalou-se diante deles um sujeito de natureza melancólica, com uma lista nas mãos. Havia 150 meninos no pátio. Oito seriam os escolhidos.

2 - O ditador menor

Ainda sob os efeitos da viagem, os recém-chegados submeteram-se às preleções do inspetor-chefe do Instituto São Francisco Xavier

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Um a um, foram empurrados para dentro da caminhonete. Ao ouvir seu nome, o último deles se agarrou em desespero ao irmão gêmeo na esperança de evitar o destino incerto. Não tinha ainda 9 anos e as palavras carregavam todo o peso da clemência. Num derradeiro recurso, mordeu a mão do homem e por causa disso foi arremessado com violência para dentro da carroceria escura onde se deparou com outros sete meninos assustados. Com o veículo em movimento, aceitou a derrota e revirou a mente em busca de um fio de memória que o atasse ao passado.

Assista ao vídeo com a história de Alceu.

O seminário era um conjunto de dois edifícios de dois pisos com um terceiro ao fundo, tendo no meio o pátio onde as crianças se esbaldavam em correrias. Havia três alojamentos, um no piso superior do primeiro pavilhão e dois no segundo pavilhão, em cujo térreo ficavam as salas de aula e a biblioteca. Entre o primeiro e o segundo pavilhão ficava a capela, onde se celebrava tudo relacionado à liturgia católica.

Os gêmeos foram criados soltos no pátio até os 6 anos. Aos domingos, carros chegavam com os pais dos internos. Alceu e Paulinho corriam ao portão e se punham à espera, contemplando os sorrisos de felicidade que pareciam não acabar mais. As horas passavam e ninguém aparecia. Eram crianças apenas, mas já esboçavam suas próprias conclusões. Alceu sentia o coração apertar.

No terceiro ano escolar, Alceu se afeiçoou a uma noviça recém-chegada. O colo de irmã Myrthes Seeg-Müller era o lugar mais seguro do mundo. À noite ela ia até sua cama para boa noite. Certa vez, era pelo meio da madrugada e o frio doía nos ossos quando irmã Myrthes se deparou com aquele toco de gente encolhido à porta. Tomou-o nos braços e se dirigiu ao alojamento. Colocou-o na cama e uma réstia de claridade revelou um par de olhos castanhos a mirá-la.

– A senhora tem mãe? – ele perguntou de chofre.

Fez-se o silêncio.

– Acho que não tenho mãe. Ela abandonou a gente.

A freira esboçava resposta quando foi interrompida por um murmúrio. “A senhora quer ser a minha mãe?”, foi a pergunta inaudível, embora os olhos o dissessem com toda força. Convicto de que se fez entender, ele aguardou ansioso pela resposta. Os olhos dela piscavam com um brilho que transpassava a semiescuridão. Seria o coração falando pelos olhos? Era um sinal, quem sabe.

Alceu aos 20 anos, pouco depois de concluir o serviço militar no 5º Batalhão Logístico.Brunno Covello/Gazeta do Povo

Fixada no rosto cândido do menino, o toque dela já não era um toque qualquer. Alceu nunca teve uma ideia perfeita do amor, mas isso que experimentava só podia ser amor. Mas que podia ele saber do amor? Tinha quase certeza de que amor era algo mais do que os momentos gostosos ao lado do irmão, ou as gargalhadas das traquinagens, ou os risos dos internos nas visitas de domingo.

Irmã Myrthes nada disse, apenas segurou a cabeça dele deu-lhe um beijo no rosto. Um beijo diferente não só por causa das lágrimas. Ela tardou alguns segundos contemplando no leito o corpo curto e roliço iluminado por escassas réstias de uma luz fraca, vendo de longe os olhos miúdos repletos de um apelo comovente.

O menino ficou parado sem uma palavra para retribuir o sussurro de “boa noite”, a mão no lugar do beijo. A mente acostumada a tantas viagens agora tinha um só pensamento: a carícia de mãe. O que vão dizer os colegas que têm uma mãe de fim de semana, agora que ele tem uma mãe para todos os dias? Os sonhos daquela noite seriam todos para atestar como é bom ter uma mãe.

Acordou feliz. Queria gritar para todo mundo que tinha uma mãe. O que é isso senão a felicidade? Procurou irmã Myrthes no refeitório, no alojamento, no pátio. Foi sendo tomado pela aflição quando, já perto do meio-dia, não encontrou vestígio da mãe. Inquiridos, frei Cássio e irmã Elenice Nora apenas dissimularam olhares. O estado de coisas fazia pressentir um drama em andamento.

As noites se sucederam entre insônia e pesadelos. Alto da noite, fugindo dos pesadelos, chamava pela irmã Myrthes. Tornou-se agressivo e malcriado. Imaginando estarem as outras freiras por trás da separação, xingava de quanto nome feio conhecia. O troco chegava rápido, com vara de marmelo e castigo num quarto escuro. De nada adiantavam as sovas. Queria a mãe. Ao se deparar com irmã Zélia, a mais severa, gritava carregado de maledicência.

– Sua bruxa. Bruxa de uma figa!

Mesmo apanhando, ou sob a ducha fria, repetia os impropérios a plenos pulmões.

– Bruxa, é isso que você é. Bruxa fedorenta!

Para assimilar a ausência de irmã Myrthes, refugiava-se na biblioteca, onde lia de enciclopédias a dicionários. Era o melhor lugar do seminário. Ali costumava ver frei Cássio entregue à leitura, sentado à mesa. De pé à porta, o menino contemplava com atenção profunda as mãos alvas virando a página ao mesmo tempo em que os olhos deslizavam sobre as linhas escritas como se engolisse todo o conhecimento. E sentia que também ele se preparava para compreender o que os livros tinham a ensinar.

Nesse templo das escrituras, punha-se maravilhado diante da estante, a contemplar os livros feito um crente diante de seus deuses. Ali estava o mundo, e o consumia numa ânsia quase febril. O treino diário da leitura fermentava a imaginação e Alceu se via o herói de aventuras fascinantes. Nessas horas não havia ódio nem inveja, tampouco desprezo ou abandono. Tudo se constituía em lenitivo para aplacar a saudade que carcomia a alma. Mas havia os malditos domingos para trazê-lo à realidade.

Ficava triste vendo chegar tantos táxis sem ninguém descer de um deles para abraçá-lo. Nesses dias tornava-se inconveniente e agressivo. Após a missa, juntava um punhado de terra e enchia os bolsos com restos de cigarro. No refeitório, jogava no prato mais próximo. Delatado, passava o domingo de castigo, ajoelhado sobre grãos de milho ou feijão. Outras vezes era trancado num cubículo escuro sob a escada, de modo que quando a porta era aberta encontravam-no todo mijado e cagado.

Essas circunstâncias o deixavam mais irritado e descontava a raiva em quem via pela frente, o vocabulário cada dia mais afiado. Com seu indefectível sotaque gaúcho, cujos trinados faziam eco nos corredores, irmã Zélia pegava pesado nas comparações: “Tu tens o diabo no corpo, guri”, “Tu te pareces com um bicho-do-mato”, “Não foste gerado por um ser humano”.

Os gêmeos reprovaram na terceira série e no início do ano letivo de 1965 foram transferidos para outro internato.

Dentro da Toyota Bandeirante foram jogados Orlando Dias, Venísio Krinert, Sérgio Luís Delgado (o Gordo Preto), Mário Soares (o Marretão), Valter Bello (o Valtinho), Celso Ferreira (o Celsinho), Sérgio Roberto (o Formigão) e, por fim, Alceu Siqueira Ramos. Na escuridão da carroceria fechada, irmã Myrthes ocupava a mente atormentada. Podia até sentir os beijos que por cinco meses o fizeram a mais feliz das criaturas.

As razões do tormento eram tão obscuras quanto sua própria história. A figura esmaecida de um homem sem rosto montado num cavalo vinha à mente quando indagado sobre o pai. Nascido em 27 de maio de 1955, em Ponta Grossa, Alceu foi registrado em Piraquara, para onde os pais se mudaram quando os gêmeos nasceram. Moravam numa casa de sítio às margens dum riacho. O pai, domador de cavalos, morreu vítima supostamente de gripe espanhola. Os gêmeos e os irmãos José e Antônio foram deixados pela mãe no Patronato Santo Antônio, em São José dos Pinhais. Maria da Conceição foi entregue ao Lar das Meninas Hermínia Lupion, em Curitiba.

Transcorridos oito anos no patronato, teve início a diáspora familiar. Alceu seria enviado para o Instituto São Francisco Xavier, em Cerro Azul, Paulo César acabou em Piraí do Sul, Antonio foi para Curitiba e José teve Guaratuba por destino.

Quando viver é um ato de rebeldia

Alceu viveu em orfanatos até os 17 anos. Escapou de um afogamento ainda bebê, foi torturado quando criança, sobreviveu a dois envenenamentos e a um tiro na cabeça. Condenado como bode expiatório, ficou 4 meses trancado numa masmorra sem ver a luz do sol. Alceu sobreviveu, superou a tirania da contingência e completa 60 anos no próximo dia 27 de maio.

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