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Quadro mostra Lula com a faixa presidencial: nostalgia da gestão do petista pode ser entendida à luz da psicologia | ABR/ABR
Quadro mostra Lula com a faixa presidencial: nostalgia da gestão do petista pode ser entendida à luz da psicologia| Foto: ABR/ABR

Nos últimos meses e com a recente inauguração da transposição do Rio São Francisco no Nordeste, que contou com a presença dos ex-presidentes Lula e Dilma Rousseff, comentários nas redes sociais brincaram com a expressão “Saudades do Lula” – aliás, a canção “Saudade do meu ex”, da cantora sertaneja Marília Mendonça, ganhou uma montagem com imagens de Luis Inácio enquanto exercia o cargo de presidente.

O movimento, porém, não parece ser fruto do acaso: no final do ano passado, uma pesquisa encomendada pelo jornal Valor Econômico já apontava que a disputa pela presidência em 2018 contará com o componente “saudade”.

O levantamento explorou ainda argumentos de eleitores que “andam afastados do PT, mas declaram intenção de votar em Lula” e identificou “reiterados sinais de um sentimento de nostalgia” em relação ao período compreendido que vai de 2003 a 2010.

Lógico, a discussão não se restringe apenas ao ex-presidente e pode ser ampliada a diversas figuras políticas controversas, mas, de uma forma geral, a idealização de um passado em que a economia crescia e a corrupção estava oculta — a Lava Jato ainda não existia — e até mesmo a dependência emocional ajudam a compreender esse e outros fenômenos semelhantes.

É bom lembrar que Lula virou réu pela quinta vez no fim do ano passado, e é acusado de crimes como corrupção passiva, organização criminosa e lavagem de dinheiro por ter angariado supostas vantagens por meio de contratos entre a Petrobras e a empreiteira Odebrecht.

“Queremismo”

Na última semana diversas manchetes noticiavam: “Lula vê ‘queremismo’ e diz que será candidato”. Pautado pelas pesquisas, que mostram altos índices de aprovação, o ex-presidente avalia que a Lava Jato causará impacto em “todos os partidos” e isto, aliado àquilo que classifica como “exageros” da operação, ao desemprego, crise econômica e a rejeição ao governo de Michel Temer, tende a produzir um movimento “queremista” por sua volta ao poder.

A expressão está cravada na história do Brasil: entre o início dos anos 1930 até 1945 o país foi governando por Getúlio Vargas que, com estratégias fascistas, se manteve no poder por quase duas décadas. O “porém” é que durante a Segunda Guerra Mundial o Brasil passou a apoiar o lado democrático do conflito, composto por países como Estados Unidos, Grã-Bretanha e França: estava ali então estabelecida uma contradição política fundamental, que impulsionaria a pressão por uma nova Constituinte e colocaria fim ao Estado Novo.

Mesmo assim, movimentos populares se manifestaram pedindo a permanência de Getúlio ou que Vargas fosse candidato à presidência em uma futura eleição. O “queremismo”, ao menos naquele momento, não atingiu seu objetivo.

Exemplos vizinhos

Essa relação histórica de culto a personalidades políticas de caráter dúbio, claro, não é exclusiva do brasileiro. Segundo o historiador Maurício Brum, especializado em ditaduras latino-americanas, exemplos semelhantes são corriqueiros no continente, nos dois extremos da ideologia política. “À direita e à esquerda é possível encontrar discursos nostálgicos de períodos antigos. No Chile, por exemplo, muitos seguem defendendo o regime de Pinochet ainda hoje por ter ‘modernizado’ a economia do país, preferindo ignorar que as reformas vieram ao custo de extrema violência política e um enorme aumento da desigualdade social”, explica.

Para Brum, a exaltação de antigos governantes com trajetórias questionáveis é um misto de desinformação e da vontade de impulsionar uma agenda política: “dos dois lados, contam-se meias verdades com um olhar que romantiza os avanços e minimiza os abusos. No caso de Cuba, é comum silenciar quanto às violações e censuras cometidas desde os tempos de Fidel Castro para evitar enfraquecer o discurso que exalta avanços sociais, de saúde e de educação ocorridos desde a Revolução”.

“Ostalgia”: quando o passado sobrepõe o presente

Alguns anos após a queda do Muro de Berlim, em novembro de 89, um sentimento de nostalgia tomou conta do lado oriental da Alemanha: a ostalgia, neologismo formado a partir da palavra “ost” (leste na língua local), cultuava um passado não mais palpável.

Thomas Brüssig, escritor alemão conhecido por suas obras que satirizam a República Democrática, abordou essa relação entre memória e passado em seus romances: é através do choque entre decepção com o contemporâneo e saudade do “ontem” que este culto ganha força. Dessa forma, por exemplo, muitos alemães nunca conseguiram conciliar toda a dicotomia de seus sentimentos, chegando a de maneira inconsciente sentir um misto de amor e ódio por Hitler no final de seu regime.

“A ostalgia parece mais com uma melancolia difusa”, analisa Brigitte Rauschenbach, professora na Universidade Livre de Berlim. Tanto que em 2009, 20 anos após a queda, uma pesquisa indicava que 57% dos moradores do leste do país ainda defendia a Alemanha Oriental. Destes, 49% justificavam sua postura afirmando que “existiam problemas, mas a vida era boa”, enquanto 8% não aceitavam qualquer crítica ao antigo modelo.

“Uma nova forma de ostalgia se formara. O anseio pelo mundo ideal da ditadura vai muito além de qualquer ex-governante”, disse o historiador Stefan Wolle em entrevista à revista Der Spiegel. Até mesmo jovens que não tiveram quase nenhuma experiência com o regime o idealizavam o que, para Wolle, colocava “o valor da própria história alemã em risco”.

Perspectiva psicológica

Já para a psicologia, todo esse sentimento é, até certo ponto, compreensível: a nostalgia pertence à natureza humana; todos gostam de revisitar o passado e, claro, certo distanciamento temporal pode distorcê-lo e torná-lo mais belo do que realmente foi.

Segundo Nei Ricardo de Souza, psicólogo e professor do curso de Psicologia da Universidade Positivo (UP), a idealização está ligada também a uma crença de satisfação, ou seja, se existe a nostalgia é porque acredita-se que uma época remota trouxe mais satisfação do que a época presente.

“É como se vivêssemos novamente uma satisfação do passado, só que no seu aspecto mais imaginário. Não que ela tenha existido de fato, mas deixou uma impressão que existiu. A psique humana tem uma propriedade de preencher lacunas, de completar vazios de memória com conteúdos que nem sempre são os mais reais, mas que se integram com outras ideias já presentes e transmitem a impressão de uma visão coerente da realidade. Nem sempre se trata de algo verdadeiro, mas de uma “montagem” de ideias que é necessária para o indivíduo”, explica.

A percepção dos indivíduos pode ser, de fato, a de que em outras épocas a situação era melhor ou, dito de outra forma, havia um nível maior de satisfação das necessidades. O problema é que a idealização de um fator ofusca todo um contexto: é a imaginação construindo uma visão da realidade.

“É o que realmente importa para compreender o fenômeno: o papel do tempo acaba acentuando as criações imaginárias, porque quanto mais distante, mais apagada fica a lembrança do que aconteceu realmente e mais fácil criar explicações fantasiosas”.

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