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Selva Almada é das escritoras mais importantes da Argentina. | Pablo Martín Cruz/Divulgação
Selva Almada é das escritoras mais importantes da Argentina.| Foto: Pablo Martín Cruz/Divulgação

Que a vida é embate, sabemos. Entre desejo e realidade, lucidez e loucura, virtude e vício. A essência da literatura de Selva Almada em “O Vento Que Arrasa” também é conflito. O mais emblemático e antigo de todos: aquele entre fé e instinto.

Primeira novela da escritora argentina, o livro é tão enxuto quanto pungente. A ação de quatro personagens (e um cachorro) é comprimida em um dia e meio. Certamente foram a agilidade da narração em terceira pessoa e os personagens bem acabados, misturados a certa atmosfera poética, os responsáveis pela eleição de “O Vento Que Arrasa” como melhor lançamento da ficção argentina em 2012. Até a criteriosa crítica Beatriz Sarlo, que assina a orelha do livro, se empolgou: ela diz que a obra é “um romance surpreendente” de uma “narradora original”.

Pense na história como um quadrado que gira como uma folha seca no Chaco argentino. Reverendo Pearson e a filha adolescente Leni têm problemas com o carro em que viajam. A região é desértica. Não há outro lugar para consertá-lo a não ser na oficina de Gringo Brauer, arquétipo do sujeito grosseirão e forte por natureza. O mecânico convive com Tapioca, um garoto pré-adolescente, e com diversos cães. Entre eles Baio, que personifica toda a manada.

O Vento Que Arrasa

Selva Almada. Tradução de Samuel Titan Jr. Cosac Naify, 122 pp., R$ 29,90.

Pearson é um pastor evangélico de fé cega e inconveniente. Reproduz pequenos sermões em cada diálogo, mesmo os triviais. Brauer é da terra. Pensa em velas, graxa e contas. Em dar de comer a Baio e educar Tapioca de maneira severa. Porque assim é a vida. O menino é tímido e quase não fala. Leni é mais vivida e interroga o garoto sobre quase tudo. Ele sempre dá de ombros. Mas há algo em comum: ambos não tiveram mãe. Tapioca porque foi deixado para trás, aos cuidados de quem deve ser seu pai; Leni porque foi impedida de conviver com o restante da família, paradoxalmente em nome da religião.

O conserto no carro demora e o pastor se aproveita de certa fragilidade emocional de Tapioca para tentar converter o menino. Brauer o ensinara sobre as coisas da natureza, não sobre as coisas de Deus. Eram capazes, os dois, “de distinguir entre uma lagartixa andando sobre a casca das árvores e um verme sobre uma folha.” Mas não sabiam que seu nome verdadeiro, José, era uma homenagem ao pai de Jesus.

Flashbacks são usados com eficiência para nos contar o passado dos quatro. São histórias espinhosas que acabam por se encontrar numa região deplorável, em que brincadeira de criança é se esconder no meio do ferro velho.

O Chaco é úmido, e a tempestade uma hora chega. A narração de Selva para este momento definitivo, quando a violência animal irrompe tanto no sujeito de fé quanto no bruto pagão (somos feitos da mesmíssima coisa, apesar daquilo em que projetamos nossa consciência) é extremamente potente, e resolve o livro, e o destino de Tapioca, com uma contundência memorável.

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