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Lina Meruane é também professora de literatura latino-americana na Universidade de Nova York. | Divulgação
Lina Meruane é também professora de literatura latino-americana na Universidade de Nova York.| Foto: Divulgação

Lucina vê um fio de sangue se apropriar de um dos olhos. Logo depois, outra mancha arrebenta no outro glóbulo.

A cegueira gradual e repentina lhe atinge como uma surra. E ao leitor também. Cada parágrafo é um soco invisível – esse é um dos principais méritos de “Sangue no Olho”, primeiro livro da chilena Lina Meruane a chegar ao Brasil.

A história é a de Lucina, uma escritora que utiliza o pseudônimo de Lina Meruane – algo autorreferencial, meio autoficção, como se ela se enquadrasse e quisesse experimentar uma situação irreal.

Lucina mora em Nova York e está se mudando para o apartamento de Ignacio, seu namorado e professor de universidade, quando se descobre quase cega por causa da diabete, um problema que carrega desde a infância.

Era noite de sábado, ou melhor, de domingo, e não havia como localizar o oftalmologista. Mas o que ele poderia dizer que eu já não soubesse?, que eu tinha litros de rancor dentro do olho?

Trecho de “Sangue no Olho”, de Lina Meruane (tradução de Josely Baptista).

A partir da revelação, acompanhamos o interminável vai e vem de Lucina ao consultório do doutor Lekz, renomado oftalmologista russo que simplesmente não consegue dar um diagnóstico definitivo ao problema.

Além disso, outros aspectos significativos da narrativa – a relação com Ignacio (agora praticamente toda sensorial) e a família (os pais são médicos, moram em Santiago do Chile, e são completamente contra uma cirurgia longe de seus cuidados)– se constroem de uma maneira degradante.

Cada passagem descrita pela personagem provém de uma rasa visão (“visão”, aqui, no sentido físico), mas de uma ampla percepção de mundo.

Pelos olhos míopes de Ignacio, seu intrínseco guia, pelos audiobooks que escuta ou pela memória aguçada que a cegueira lhe desperta, ela tenta se adaptar à condição de não poder mais construir imagens através do cristalino.

O estabelecimento de um pacto de dependência é feito até com o próprio corpo – o ato de sussurrar quantos passos são necessários para conseguir ir até o banheiro agora lhe é inescapável. Lucina tem de aprender a tatear as coisas de outro jeito.

“Sangue no Olho”

Lina Meruane. Tradução de Josely Vianna Baptista. Cosac Naify, 192 pp., R$ 34,90. Romance.

A autora concentra os maiores momentos de entrega de Lucina quando ela está sozinha com Ignacio.

Enquanto desenha a incerteza do acontecimento, o problema dela serve de guinada à provação do relacionamento.

Ignacio é confrontado e posto em situações aparentemente comuns se não tivesse uma companheira desenvolvendo um quadro de cegueira irreversível. E, ainda, se vê numa linha tênue entre a adaptação, a entrega completa e o abandono.

À parte das recomendações de escritores como Roberto Bolaño, Juan Pablo Villalobos e Enrique Vila-Matas, Lina Meruane, que além de escritora é professora de literatura latino-americana da Universidade de Nova York, consegue construir uma narrativa absolutamente claustro-fóbica e angustiante.

É como se você [leitor], em certos momentos do livro, assumisse o papel de guia da protagonista; quase como se ela te obrigasse a arrancar os olhos para doá-los a ela.

Isso se transfere também à própria estética do livro. Na edição brasileira, publicada pela Cosac Naify, as páginas vão enegrecendo gradualmente.

A sensação é de se estar lendo com a luz apagada.

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