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A maioria das pessoas talvez lembre de pouca coisa sobre o Brasil Colônia. Alguma coisa sobre a extração do pau-brasil no litoral, as capitanias hereditárias, a produção de açúcar nos engenhos e a descoberta de ouro nas minas.

Dificilmente deve ter aprendido sobre as pessoas que moravam aqui nos primeiros anos de colonização. Que elas raramente comiam carne vermelha, que era de difícil produção. Ou que antes da chegada das igrejas com seus sinos não havia instrumentos de medição de tempo e que expressões como “o tempo de duas ave-marias” ou “o tempo de uma mijada” eram comuns.

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Pois é a vida das pessoas normais o tema da coleção “Histórias da Gente Brasileira”.Escrito pela pesquisadora Mary del Priore, o livro se ocupa dos hábitos da população e mostra uma parte da vida que não faz parte dos livros de história.

Baltasar Dias teve seu pedaço de sabão furtado em 1618 e acabou por ser denunciado à Inquisição por blasfêmia - os xingamentos que fez quando descobriu o crime foram mal interpretados

“A ideia é abrir uma janela para o passado, se comunicar com os nossos antepassados, fazer uma viagem ao dia a dia. Recuperar esses pequenos gestos foi um trabalho muito gostoso de fazer”, conta a historiadora.

Roubaram o sabão

O livro não conta a chegada de Pedro Álvares Cabral no Brasil, mas sim a história de Isabel Antônia, que fez uma demonstração pública de ciúme em Salvador, xingando e esbofeteando uma amante quando soube que ela teria saído com um homem. Ou a de Baltasar Dias, que teve seu pedaço de sabão furtado em 1618 e acabou por ser denunciado à Inquisição por blasfêmia - os xingamentos que fez quando descobriu o crime foram mal interpretados.

Para realizar o trabalho, del Priore recupera diversos documentos, como relatos de estrangeiros que visitaram o país no período, cartas e bilhetes trocados por membros da população, escritos oficiais e certidões. Além disso, as vozes de escritores do período, como Padre Anchieta e o poeta Gregório de Matos também são evocadas.

A falta de escola, por exemplo, vem desde o período colonial. As crianças aprendiam a ler com orações e existia uma circulação muito baixa de livros. Estamos colhendo os frutos de um descaso de 500 anos

Mary del Prioreescritora e pesquisadora

O resultado polifônico tenta dar conta de detalhes da vida da colônia, desde roupas a alimentação e até relacionamentos amorosos. “A história desses anônimos aproxima o leitor da realidade do passado. Ver como viviam e como sofriam mostra que eles tinham vários problemas que temos hoje. É diferente do que ler sobre a história das grandes figuras, dos heróis”, relata a historiadora.

Histórias da Gente Brasileira

O livro, repartido em pequenos capítulos agrupados por áreas de interesse e amplamente ilustrado, aborda vários temas: agricultura, mineração, migração, morte, sexo, alimentação, relação com a natureza, arquitetura e até vestimentas. É possível até que o leitor se atenha às suas áreas de preferência: “o leitor pode entrar no livro pelo lugar que preferir, de acordo com sua curiosidade”, diz a autora.

“É um livro sobre as novidades que vem com a corte e o que muda na vida das pessoas nesse período. Tem muito sobre a luta pela república e pela abolição, mas também sobre as tecnologias que chegam, como jornais e bondes. Vamos ver também um aumento da privacidade e as casas vão ganhar banheiro e cozinha”, adianta a historiadora.

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O terceiro volume se debruça nos anos republicanos entre 1889 e 1950 e o quarto volume se ocupa dos anos de 1951 a 2000, com o governo Getúlio Vargas, a Ditadura Militar e a redemocratização.

Mazelas que permanecem

A pesquisa permite também alguns paralelos entre aquele Brasil e o Brasil de hoje, relações que podem inclusive ajudar o leitor a entender algumas das nossas características atuais.

Para a autora, isso fica evidente na questão da educação. “A falta de escola, por exemplo, vem desde o período colonial. As crianças aprendiam a ler com orações e existia uma circulação muito baixa de livros. Estamos colhendo os frutos de um descaso de 500 anos”, explica em entrevista. No livro, ela explica como crianças eram educadas em casa - as instituições de ensino são mais recentes - e apenas filhos de imigrantes europeus ricos tinham oportunidade de continuar sua educação na Europa - um percentual muito baixo da população.

Outra área em que essa relação é possível é a de saúde: médicos eram raros no período colonial e custavam muito caro para a população, sendo basicamente inacessíveis. Curandeiros negros e indígenas foram uma peça fundamental da vida então. “Eles conheciam as plantas, as doenças tropicais, os tipos de picadas de bichos. Eles que salvavam vidas”, conta a historiadora.

Para a autora, a pesquisa mostra tanto que esses dois problemas são antigos como que já houve grandes melhoras - apesar dos problemas que ainda se enfrentam nesses âmbitos.

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11 coisas que você talvez não saiba sobre o Brasil colonial

Língua Franca

As diferentes tribos indígenas que ocupavam a região do litoral brasileiro compartilhavam características culturais e usavam uma língua comum para se comunicar - o Tupi. Para facilitar a relação comercial entre índios e portugueses, alguns colonizadores aprenderam a língua e serviam como intérpretes nas trocas. Além disso, os jesuítas também aprenderam a língua e a usavam em cerimônias religiosas. O Tupi foi a primeira língua franca do país.

Cana-de-Açúcar

A cana-de-açúcar não é nativa da América do Sul: a planta foi trazida por portugueses da Índia e encontrou um ambiente propício para seu cultivo no Brasil. Segundo Mary del Priore, a planta é originária da região entre os deltas dos rios Ganges e Assam. Por muito tempo o caldo de cana e o açúcar foram considerados remédios, só sendo incorporados na alimentação a partir do século XV.

Cafuné

O cafuné é antigo: o pastor americano Daniel Kidder descreveu uma cena de cafuné que presenciou em cerca de 1830 - ainda que ele não entendesse completamente o que as moças estavam fazendo na cabeça dos rapazes. Segundo del Priore, a ação geralmente acontecia à sombra depois das refeições ou de noite e consistia em catar ou fingir catar piolhos e lêndeas.

Banheiros

As casas ainda não tinham banheiros. A saída era a utilização dos penicos, esvaziados em ruas ou praias por escravos diariamente ou em até uma vez por semana. Eles normalmente eram feitos de barro e ficavam em cantos escondidos na área externa da casa. Em casas mais ricas, eram feitos assentos móveis de madeira para esconder o artefato.

Namoro

Ainda que os casamentos entre os brancos fossem normalmente arranjados pelos pais, existiam formas de namoro, que consistiam em interações leves entre as moças - prostradas nas janelas de suas casas - e os rapazes que passavam na rua. O namoro de bufarinheiro era o direcionamento de piscadas dos rapazes para as moças em dias de procissão. Já o namoro de escarrinho acontecia quando a interação era dada por meio de sons de tosse e fungadas. “Fazer cócegas na palma da mão e pôr a mão sobre o coração para dizer o querer bem era parte da gramática amorosa”, escreve del Priore. Já uniões consensuais, espontâneas e não oficializadas eram comuns em outros grupos da sociedade, em que homens e mulheres se juntavam para sobreviver.

Mineração

Os portugueses não tinham experiência com mineração e manipulação de ouro ou ferro. A maior parte das técnicas utilizadas nas minas foram trazidas pelos escravos. A descoberta do ouro no Brasil mudou inclusive a economia escravocrata: passou-se a priorizar a apreensão e importação de escravos da chamada Costa da Mina, região africana que apresentava intensa exploração mineral. Assim, os escravos não forneciam apenas a mão-de-obra, mas também a técnica necessária para o trabalho.

Entretenimento

Como o Brasil era uma colônia de exploração, as pessoas se ocupavam das atividades econômicas predatórias e de sua própria sobrevivência, restando pouco tempo para outras atividades. Existiam sim algumas festas, normalmente de cunho religioso, e celebrações menores para eventos como casamentos e nascimentos, chamadas de “funções”. Mas existiam algumas manifestações culturais: alguns escravos cantavam e dançavam enquanto trabalhavam e homens já se endividavam com jogos de carta.

Banho

O banho diário era raro: apenas índios e escravos tomavam banhos diários em rios. Europeus, principalmente em regiões mais urbanas raramente se banhavam de corpo inteiro. A limpeza era normalmente feita com toalhas e se ocupava apenas de algumas partes do corpo. Sabões eram produtos raros na colônia.

Saúde

Existiam poucos médicos no Brasil e eles normalmente custavam muito caro. Curandeiros, índios ou escravos que conheciam bem plantas e pequenos procedimentos, tiveram um papel essencial para salvar vidas na época colonial. O medo de epidemias era tanto que, em 1666, a Câmara de São Paulo foi isolada para escapar de um surto de varíola. A tentativa de invasão do perímetro deveria ser parada com uso de balas.

Alimentação

O foco na lavoura monocultora de cana-de-açúcar provocou uma baixa variedade na produção agrícola e a oferta de produtos alimentícios era baixa. Era comum, porém, a caça, a pesca e a colheita nas matas selvagens. Uma refeição comum era constituída de carne-seca, feijões e farinha de mandioca. Os escravos foram responsáveis por trazer para o Brasil alguns temperos, como a pimenta. Era possível comprar alguns itens importados, como manteiga, farinha de trigo e vinho, mas eram caros e tinham uma disponibilidade baixa. Já a confecção de doces com bastante açúcar ficou cada vez mais comum. Outros ingredientes para a confecção de sobremesas eram o milho e frutas.

Casas e Móveis

Não existia muito luxo no período. A maior parte das casas, principalmente nos primeiros anos de colonização, foram feitas para proteção e usavam frequentemente técnicas indígenas. Essas casas de curta duração foram substituídas aos poucos por casas mais duráveis. Até os móveis eram poucos e a ampla utilização de redes para dormir fez com que camas fossem raras. Grandes mesas para refeições quase não existiam - comer junto não era um hábito então.

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