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“Particularmente, até gosto da ideia de fazer ficção sobre ‘a aparência da realidade’”, diz Vilas-Boas. | Divulgação
“Particularmente, até gosto da ideia de fazer ficção sobre ‘a aparência da realidade’”, diz Vilas-Boas.| Foto: Divulgação

Uma das funções da literatura parece ser a de esclarecer o mundo a respeito de grandes temas que o desafiam. Encontrar explicações, comungar pontos de vista, surpreender-se com opiniões originais sobre algo invisível porque nos é contemporâneo.

Assunto desse tipo é o conflito entre gerações que, singradas por uma tecnologia potencialmente desumanizante e experiências de vida díspares, desaguam em ideologias e filosofias de vida aparentemente opostas.

É mais ou menos esse o mote de “A Superfície Sobre Nós”, do escritor e jornalista Sergio Vilas-Boas. Vencedor do prêmio Jabuti na categoria Reportagem por “Os Estrangeiros do Trem N”, em 1998, e reconhecido por seus estudos sobre biografias e perfis (tem várias obras sobre o assunto), o livro marca o retorno do autor à ficção. Ou algo assim.

“A grande luta de quem escreve histórias é evitar enquadramentos teóricos”

Entrevista com Sergio Vilas-Boas

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“É como se estivesse redescobrindo a beleza da criação. Ainda bem: o jornalismo e a academia são instâncias muito racionais e previsíveis. Qualquer narrativa é uma escolha e, qualquer que seja a escolha, haverá sempre uma linguagem cabível para ela. Particularmente, até gosto da ideia de fazer ficção sobre ‘a aparência da realidade’”, escreve Vilas-Boas, em entrevista por e-mail.

O leitmotif da obra é a relação entre Hugo e Jaime. Hugo é o narrador. Tem 28 anos em 2011, ano em que conta a história. Começa pelo dia em que conhece o antropólogo Jaime. Isso foi em 2001, em meio a uma greve no jornal em que trabalhavam – Hugo era estagiário na área de TI e Jaime, tradutor de notícias de agências. Hugo estava com 18 anos. Jaime, 44. Tinham pouco a ver um com o outro, em termos de personalidade e visão de mundo.

Livro

A Superfície Sobre Nós

Sergio Vilas-Boas. Amarilys. 203 pp., R$ 39.

“Hugo era imaturo e indeciso, filho único de uma família rica, consumista e indiferente ao que o filho pensava ou dizia. Seus pais detestavam que ele estivesse trabalhando em uma empresa decadente, de um setor decadente” explica Vilas-Boas. Jaime atravessava um momento complicado: a mulher Lara e o pai Olímpio estavam no hospital, passando por cirurgias complexas no mesmo dia. Após uma assembleia sindical conturbada, Hugo e Jaime acabam num bar . E ali engatam a primeira conversa.

O que poderia ser um papo casual sobre assuntos aleatórios transforma-se num intercâmbio metafísico entre gerações. Baby boomer, Jaime é caçado por uma sombra: um projeto pessoal mal resolvido, que o envergonha. Membro declarado da geração Y, Hugo não consegue agir de maneira prática para ingressar no que acredita ser a “vida adulta”. “Ele vê em Jaime a inspiração para uma existência mais desapegada e autônoma, com todas as renúncias e recusas que isto implica”, explica o autor, definindo o coração do romance.

Com digressões profundas dos dois personagens, o livro desenrola-se com maestria por assuntos como educação, religião e consumismo. A tecnologia também é elemento essencial, não só em toda a discussão proposta, mas como ferramenta narrativa utilizada por Vilas-Boas –polifônica, a obra reproduz pitacos textuais da namorada de Hugo, além de trocas de torpedos e e-mails.

“Os colchetes, parênteses, e-mails, chats, os inseri com o intuito de ‘dessacralizar’ a narrativa clássica; e para sugerir que vivemos numa salada de linguagens dispersivas”, explica.

O que fica da obra é um pensamento suspenso sobre (pode parecer piegas) o que de fato importa hoje. Como se, ao adquirir experiências de quem já esteve lá, olhássemos para o passado e para o futuro ao mesmo tempo. “Estamos muito mais voltados para o atendimento às expectativas dos outros do que para a descoberta de nós mesmos e do nosso propósito no mundo.” Um dos livros do ano, enfim.

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