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 | Osvalter Urbinati
| Foto: Osvalter Urbinati

Somos mais felizes em lugares que nos pertenceram. Estabelecemos relações afetivas com cimento e pedra, madeira e aço, corrimões compridos e aquelas lajotas quadradas de cor de barro queimado, tão comuns.

A casa da infância, dos pijamas de borboletas azuis e da primeira gripe curada com Vick, será sempre a melhor das casas, mesmo que tenha sido minúscula, ou que hoje esteja em cacos, habitada por inquilinos intrusos. Em busca da preservação do que fomos, a memória funciona como uma reforma completa e instantânea. São sempre as pequenas histórias, que nos invadem pela covardia do apego e depois são cuspidas pela lembrança enxerida.

Penso que lembrar o que vivemos é esquecer-se de morrer.

Dia desses me vi em frente ao Colégio Estadual Dr. Xavier da Silva, instituição centenária cujo prédio ainda imponente se destaca em meio às caixinhas envidraçadas da Avenida Silva Jardim.

Por algumas vezes cogitei revisitar o lugar onde passei oito invernos. Onde ganhei um campeonato de futebol como goleiro. Onde perdi um campeonato de futebol-de-latinha-amassada. Onde tremia quando a professora de Matemática batia na mesa com a gigantesca régua de madeira quando não parávamos de enchuriçá-la. De fora, percebi que o uniforme mudou (antigamente o símbolo era um X&S que chamávamos de X-salada) e que a banca do geladinho não existe mais. A entrada agora é pelo outro portão. Penso que lembrar-se do que não existe mais é como morrer um pouquinho.

Há um bom filme que ficou em cartaz pouco tempo em Curitiba: Em um Pátio de Paris. Antoine (Gustave Kervern), sujeito solitário e depressivo, desiste da carreira de músico e arranja um bico como zelador em um antigo prédio. Sua patroa é Mathilde (Catherine Deneuve), senhora cheia de manias e obsessões com quem Antoine desenvolve uma interessante relação de afeto e de mútuo entendimento.

Mathilde está muito preocupada com uma rachadura na parede. Dentro de sua cabeça, o prédio está prestes a desmoronar. Depois do papelão que a senhora amalucada faz em uma reunião de condomínio, Antoine convida Mathilde para um passeio. A ideia é revisitar o bairro em que nasceu. Relembrar coisas boas, desanuviar.

Chegando à casa onde passou a infância, Mathilde vê que o banheiro mudou de lugar. Percebe que o carvalho de 300 anos foi decepado. E que a antiga oficina do pai virou pó. Às vezes é melhor manter o passado no passado.

A memória constituída de lugares ilumina ou destrói.

Passo pela Avenida Getúlio Vargas hoje e lembro que há muito tempo deixei uma pegada no cimento fresco, naquele espaço tímido que fica entre as pedras do calçamento. Não está mais lá.

Penso que lembrar-se do que foi apagado é como apagar um pouco de si mesmo.

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