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É provável que nenhum ano do século 20 tenha sido tão importante quanto 1945. Por um lado, a derrota da Alemanha nazista pôs fim a um dos dois grandes riscos que o totalitarismo trouxe ao mundo. Eis a parte boa: as democracias ocidentais tinham conseguido, aliadas a Stálin, libertar a Europa do jugo de Hitler. Metade do continente, porém, só se libertaria do totalitarismo comunista mais de quatro décadas depois.

Foi também com o fim da guerra que começou a divisão do mundo entre dois polos, no que ficaria conhecido como Guerra Fria. De um lado, liderados pelos americanos, os países capitalistas; de outro, a União Soviética, a China e a Europa Oriental alinhados para uma disputa que envolveria guerras locais (Coreia, Vietnã, Afeganistão), corrida armamentista e até uma batalha tecnológica para ver quem chegaria primeiro à Lua.

Mas, para além da geopolítica, 1945 foi o ano em que a humanidade descobriria horrores da guerra que jamais tinham sido imaginados. A derrota da Alemanha foi obtida a custo de um avanço constante das duas frentes organizadas pelos Aliados. Com Hitler obstinado em não negociar e a decisão de seus inimigos de só aceitar a rendição incondicional, os soldados alemães optaram por lutar até o fim, mesmo sem a menor chance de vencer a guerra. O saldo chegava a meio milhão de mortes por mês.

Enquanto avançavam, os soviéticos se depararam com o horror dos campos de concentração nazistas, especialmente em território polonês. Em Auschwitz, onde tinham sido assassinadas 1,1 milhão de pessoas, o Exército Vermelho libertou os sete mil prisioneiros deixados para trás pelos nazistas em fuga: esquálidos, mortos-vivos, que relataram pela primeira vez o horror das câmaras de gás. O mundo, até então, não tinha noção completa do que havia acontecido com os judeus que vinham sumindo da Alemanha e sendo transportado em trens para o Leste.

O historiador Ian Kershaw conta em “O fim do terceiro Reich” o horror do recuo alemão. Um grupo de sete mil judeus retirados às pressas de campos perto de Stutthof, na Prússia Oriental, foi conduzido em uma marcha insana por oficiais da SS que não sabiam o que fazer com eles. Depois de muitas mortes pelo caminho, decidiram colocá-los em uma mina, que seria fechada em seguida. Isso só não ocorreu porque o administrador do local se recusou – tendo sido assassinado três dias depois. Os judeus foram fuzilados e só 200 sobreviveram.

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Enquanto isso, no front do Pacífico, os Aliados avançavam passo a passo para a conquista do Japão. E foi lá que os novos e últimos horrores da guerra ocorreram. Em 9 de março de 1945, os Aliados deram início a uma série de ataques incendiários a Tóquio. Durante a Operação Meetinghouse, foram despejadas 1,6 mil toneladas de bombas sobre a capital japonesa. Para se ter uma noção do tamanho da operação: foram necessários 334 aviões para carregar os explosivos. As bombas, antes de cair no solo, se fragmentavam. Cada uma liberava 38 explosivos que se inflamavam em até 5 segundos, jogando jatos de Napalm. Cerca de 100 mil pessoas morreram no ataque.

Hiroshima

Em 6 de agosto de 1945, às 8h15, os habitantes de Hiroshima viram um clarão no céu. Dentro de poucos minutos, a cidade tinha sido completamente desfigurada. Dessa vez, um único avião e uma única bomba tinham sido suficientes para causar mais de 100 mil mortes. Nenhum dos sobreviventes conseguia sequer entender o que tinha caído sobre eles: a ideia de uma bomba atômica era inimaginável. Três dias depois, outra bomba atingiu Nagasaki.

Para compreender o espanto dos atingidos pela bomba, é preciso tirar da cabeça de quem vive no século 21 a imagem das guerras que acompanhamos hoje pela televisão. Até o início do século 20, todos os combates eram campais e decididos ou em terra ou no mar. O uso de aviões se tornou constante com a Primeira Guerra mundial. Mas até a Segunda Guerra Mundial, não havia nada parecido com foguetes ou mísseis.

Os alemães, mesmo depois de terem sido expulsos da União Soviética e de perderem terreno para os Aliados ocidentais, em 1944, tinham crença de que as armas superiores que vinham desenvolvendo iriam mudar a sorte da guerra. Esse trunfo incluía armas que nunca vieram – mas dentre as que realmente foram usadas pelos nazistas estavam os mísseis V1 e V2. Era a primeira vez na história que um exército podia atacar outro a distância, sem precisar enviar tropas ou aviões para o ataque.

O romancista norte-americano Thomas Pynchon em “O Arco-Íris da Gravidade” retrata o horror que isso causou nos ingleses no final da guerra. Com a invenção do V1, as pessoas passaram a ter de se acostumar com a ideia de que a morte seria anunciada unicamente por uma luz que antecedia a queda da bomba. Com os V2, até mesmo esse mínimo alerta desapareceu. A morte era súbita, não anunciada, imediata.

No mundo ocidental, o primeiro momento depois da explosão em Hiroshima também foi de tentar entender o que havia ocorrido. Os jornais, as tevês, se esmeraram em explicar o que estava acontecendo: o que era a bomba, como ela tinha sido jogada, os aspectos técnicos, o poder destrutivo. É chocante saber que, num primeiro momento, pareceu haver entusiasmo com a notícia da explosão. Primeiro, porque muita gente achava que, com isso, o Japão se renderia (como realmente aconteceu), acabando com a guerra no Pacífico; por outro, pela “conquista técnica” que isso representava para a humanidade.

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O filósofo e escritor francês Albert Camus foi uma voz dissonante ao fazer publicar no dia 8, dois dias após a explosão em Hiroshima, na revista Combat, um editorial com uma visão bem mais crítica sobre os eventos no Japão. “Ficamos sabendo, em meio a centenas de comentários entusiasmados, que qualquer cidade de porte médio pode ser varrida do mapa por uma bomba do tamanho de uma bola de futebol. Jornais americanos, ingleses e franceses estão cheios de ensaios elegantes sobre o futuro, o passado, os inventores, o custo, os incentivos à paz, e até sobre as vantagens militares, e sobre o caráter independente das bombas. Nossa civilização técnica acaba de atingir seu maior grau de selvageria”, escreveu.

É preciso dizer que o entusiasmo pode ter sido um pouco menos bárbaro do que parece a nós, hoje, que temos acesso a fotos e documentos, a relatos e a vídeos mostrando o efeito total da destruição. Nos primeiros dias, no Ocidente, não se tinha tanta noção do que havia ocorrido com os habitantes de Hiroshima. Em parte, foi por isso que a reportagem clássica de John Hersey para a New Yorker, em 1946, em que ele acompanhou a vida de seis vítimas da bomba, causou tanto impacto: ninguém imaginava o inferno em que aquela cidade havia se transformado.

Efeitos

Hersey conta histórias terríveis, como a de uma mãe que insiste em carregar o filho no colo sem perceber – ou se recusando a admitir – que ele está morto. Mas só com o tempo, com o fim da guerra, com a divulgação do que havia ocorrido se percebeu que o drama humano era absolutamente inimaginável para quem não havia vivido aquilo.

A bomba “mais brilhante do que mil sóis” havia matado basicamente todas as pessoas em um raio de 1,6 quilômetro quadrado. O efeito diminuía com a distância. Mas as pessoas, mesmo assim, foram devastadas pela bomba em um raio de 11 quilômetros. Com o tempo, o número de mortos dobrou, passando de 100 mil em Hiroshima (fala-se em 166 mil) devido a doenças, principalmente o câncer, causados pela radiação. Em Nagasaki, podem ter morrido mais 80 mil pessoas.

Entre os que não morreram, havia cegos, doentes, pessoas que perderam tudo, pessoas que enlouqueceram. Entre os que morreram, houve os que simplesmente desapareceram. Visitando o museu da bomba, em Hiroshima, é possível ver pedras em que as pessoas estavam sentadas e que ficaram com uma mera mancha escura, como se fosse a sombra da pessoa, impressa – nada mais que dissesse respeito àquele corpo voltou a ser encontrado.

O efeito militar das bombas foi igualmente impressionante – o Japão se rendeu quase que imediatamente após a queda das bombas. Hersey conta do espanto das pessoas de ouvirem pelo rádio o pronunciamento do imperador Hirohito, anunciando a capitulação: o espanto não se devia apenas ao fim da guerra, mas também tinha origem na revelação da voz de Hirohito – o imperador, o teno, como o chamam os japoneses, era tido como descendente de deuses, e jamais tinha contato com a população, nem mesmo pelo rádio.

A rendição dos japoneses fortaleceu ideia de que jogar a bomba tinha sido um cálculo bem feito. As mortes das pessoas nas duas cidades atingidas pelo horror nuclear teriam poupado as vidas que inevitavelmente seriam perdidas nas batalhas para que se invadisse o Japão, forçando o último país do Eixo a aceitar a capitulação.

O presidente americano Harry S. Truman – em última instância o responsável pela decisão de jogar as bombas – disse também pelo rádio, no dia 9, numa tentativa de defender o que havia feito, que os japoneses eram culpados de crimes de guerra, o que também seria parte da justificativa para o ataque. “Tendo descoberto a bomba, nós a usamos. Nós a usamos contra aqueles que nos atacaram sem aviso em Pearl Harbor, contra aqueles que fizeram os prisioneiros americanos passar fome, que bateram nos prisioneiros e os executaram, contra aqueles que abandonaram toda pretensão de obedecer as leis internacionais da guerra.”

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Recorrendo ao argumento do cálculo de mortes, Truman, que tinha assumido o governo em definitivo em abril daquele ano, com a morte do presidente Franklin Delano Roosevelt, prosseguiu. “Nós usamos a bomba para encurtar a agonia da guerra, para salvar as vidas de milhares e milhares de jovens americanos”.

Com o passar do tempo, os argumentos de Truman e de todos aqueles que se empolgaram com as bombas seriam postos cada vez mais em xeque.

Mortes de civis

John Rawls, que nos anos 1970 se tornaria um dos filósofos mais importantes do mundo a escrever sobre política e justiça, estava em 1945 no front do Pacífico. Nem por isso passaria a apoiar a ideia de jogar bombas sobre civis japoneses para fazer com que a guerra acabasse mais rapidamente.

Num artigo sobre o tema publicado em 1995, quando se completavam 50 anos dos ataques ao Japão, Rawls diz que todo país democrático que quer respeitar as regras da guerra, só pode agir em batalha dentro de determinadas regras. Uma delas é a de agir apenas quando necessário, quando agredido. (Nesse ponto, ele aproveita para dizer que há indícios fortes de que democracias não entram em guerra umas contra as outras – em geral, pelo menos uma das partes não é democrática.)

Além disso, Rawls afirma que é preciso discernir entre três tipos de cidadãos num país contra o qual uma democracia guerreia. Os líderes do governo agressor (que, na tese dele, não pode ser uma democracia) são culpados e podem ser alvos do exército. O segundo grupo é formado pelos soldados, que podem não apoiar esse governo e não ter culpa pela guerra – mas é lícito que sejam combatidos pelo simples motivo de que não é possível vencer a guerra sem recorrer a isso.

O terceiro grupo, no entanto, o dos civis, não tem qualquer responsabilidade sobre a guerra e não deve ser alvo de ações militares. Rawls abre uma única exceção, com uma cláusula “de emergência”, que afirma ser possível realizar ataques contra civis quando esse é o último recurso para salvar uma democracia contra um governo tirânico. Assim, seria possível perdoar a Inglaterra por atacar civis na Alemanha no início da guerra, quando Churchill estava isolado e a Europa corria o risco de sucumbir a Hitler.

No caso japonês, no entanto, isso não ocorria. O governo do Japão, embora fosse expansionista, não pregava o genocídio, como ocorria com os nazistas, e de acordo com Rawls seria possível negociar uma rendição – no caso dos nazistas, Roosevelt e Churchill haviam dito que só aceitariam uma rendição incondicional. Na verdade, diz o filósofo, seria obrigatório estabelecer conversações sobre a possibilidade de rendição antes do ataque, o que não ocorreu.

Os limites do cálculo

Também por ocasião dos cinquenta anos das bombas de Hiroshima e Nagasaki, o filósofo norte-americano Michael Walzer publicou um ensaio intitulado “Os limites do cálculo”, em que afirma que os argumentos de Truman em defesa da bomba não se sustentam. Novamente o argumento tem relação com a diferença entre atacar aqueles que causam a guerra e aqueles que não são responsáveis diretos por ela.

“Se os japoneses tivessem explodido uma bomba atômica em uma cidade americana, matando dezenas de milhares de civis e por meio disso encurtado a agonia da guerra, a ação claramente teria sido um crime, mais um para a lista de Truman. Essa distinção só é plausível, contudo, se alguém passa a julgar não só os líderes japoneses, mas também as pessoas comuns de Hiroshima e insiste ao mesmo tempo que o mesmo julgamento não é possível em relação às pessoas de São Francisco, digamos, ou Denver.”

Walzer opina, como Rawls, que a única justificativa possível, no fim das contas, para a decisão de Truman, além de um cálculo impossível e intolerável sobre quantas vidas seriam poupadas (ao custo das vidas de Hirshioma e Nagasaki) é o velho adágio de que a guerra é um inferno – e de que, portanto, tudo é permitido. Mas nem isso é possível, opina ele. “Se a guerra é um inferno independentemente de como se combate, que diferença pode fazer o modo como combatemos? (...) Essa é uma visão distorcida. Confunde o verdadeiro inferno da guerra, que é particular em seu caráter e está aberto a uma definição precisa, com as dores ilimitadas da mitologia religiosa. As dores da guerra só são ilimitadas se nós as fizermos assim – só se nós ultrapassarmos, como Truman fez, os limites que nós e os outros estabelecemos.”

A referência ao inferno é um ponto em comum com a análise que Camus tinha feito cinquenta anos antes, ainda no calor dos acontecimentos. Intitulado “A última chance da humanidade”, o texto de Camus afirmava peremptoriamente que dado o poder de destruição e a selvageria que nossa técnica tinha atingido, era preciso escolher a partir daquele momento, entre duas únicas opções que nos restavam: o inferno ou a razão.

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