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Bob Dylan se apresenta em Cleveland, Ohio (EUA). | Staff/Reuters
Bob Dylan se apresenta em Cleveland, Ohio (EUA).| Foto: Staff/Reuters

Nora Ephron uma vez perguntou a Bob Dylan se ele se considerava um poeta – e, com isso, ela queria dizer se ele achava que suas palavras conseguiam “se sustentar sem a música”. Dylan respondeu, “Ah, elas se sustentam, sim, mas eu não as leio. Prefiro cantá-las”. Ele claramente não está sozinho: na última quinta-feira (13/10), descobrimos que Dylan ganhou o prêmio Nobel da Literatura de 2016, “por ter criado novas expressões poéticas dentro da grande tradição da canção americana”. Em outras palavras, Dylan ganhou por ser um poeta que por acaso também é cantor.

Já não era sem tempo.

Unindo-se a autores como William Butler Yeats (1923), T. S. Eliot (1948), William Faulkner (1949), Gabriel García Márquez (1982) e Toni Morrison (1993), que foi o último nome dos EUA a ganhar o prêmio, o Nobel estabelece Dylan como um autor em primeiro plano e astro do rock em segundo. E sobre os seus versos, como o próprio Dylan já disse antes, se sustentarem sozinhos: “Não são as melodias que importam, cara, são as palavras”.

Ao reconhecerem Dylan, os membros do comitê do Nobel sem dúvida quiseram homenagear as suas palavras, mas também causar algum frisson – perturbar o “establishment” literário ao convidarem um astro pop para a festa. E talvez também dar uma alfinetada não muito sutil a uma geração de autores norte-americanos que eles consideraram indignos dessa honra.

Porém, por mais que a Academia Sueca tenha sentido vontade de dar uma agitada nas coisas, o fato de terem conferido o prêmio a Dylan foi, na verdade, uma aposta bem segura. Afinal de contas, suas letras se bastam na página – elas se comportam como poemas.

Porém, por mais que a Academia Sueca tenha sentido vontade de dar uma agitada nas coisas, o fato de terem conferido o prêmio a Dylan foi, na verdade, uma aposta bem segura. Afinal de contas, suas letras se bastam na página – elas se comportam como poemas. Veja, por exemplo, a coletânea de letras editada pelo crítico literário Christopher Ricks, em 2014, que apresenta os versos de Dylan como se tivessem sido retirados das “Baladas Líricas” de Wordsworth e Coleridge. Lembremos que, naquele mesmo ano, o rascunho, escrito à mão, de “Like a Rolling Stone”, foi vendido por mais de US$2 milhões. Sua reputação literária já estava muito bem estabelecida.

Como poeta, o talento de Dylan está em maior evidência na imperfeição calculada de suas rimas. Há um tipo de apelo incômodo na falta de resolução de rimas neste dístico de “Thunder on the Mountain”: “I’m gonna raise me an army, some tough sons of bitches / I’ll recruit my army from the orphanages” [Vou criar um exército pra mim, uns filhos da puta bem durões / Vou recrutar meu exército nos orfanatos]. Tecnicamente, esta é uma meia rima composta – “composta”, porque Dylan faz a rima entre uma expressão de palavras múltiplas (“sons of bitches”) com uma palavra de quatro sílabas (“orphanages”), e “meia rima” porque “sons of bitches” e “orphanages” não constituem uma rima perfeita. O homem é um poeta. Isso é difícil de disputar.

Um Nobel para Taylor Swift

A verdadeira dúvida é esta: Até que ponto estamos dispostos a abrir a porteira para considerar o mérito literário das letras de outros compositores? Nos anos por vir, será que o comitê do Nobel poderia considerar a obra de Nas ou Kendrick Lamar? Joni Mitchell ou Taylor Swift? Será que o prêmio dado a Dylan acabará sendo uma exceção ou ele estabelecerá novas regras?

Nos anos por vir, será que o comitê do Nobel poderia considerar a obra de Nas ou Kendrick Lamar? Joni Mitchell ou Taylor Swift?

As letras de canções populares são o pulso vital da poesia contemporânea – contanto que não nos limitemos somente à palavra escrita. “Em meio a todas as bobagens que já foram escritas sobre a poesia de Neil Young, Paul Simon ou mesmo Bob Dylan”, escreve Greil Marcus, em “Mystery Train”, “ninguém nunca disse nada sobre a ‘Little Wing’, de Jimi Hendrix. A questão poética, sobretudo quando estamos lidando com uma canção, tem a ver com o modo como o autor usa a linguagem – e sua música será parte de sua linguagem – para que as palavras façam coisas que não costumam fazer, com o modo como ele testa os limites da linguagem e altera e estende o impacto convencional das imagens ou resgata recursos linguísticos que foram perdidos ou destruídos”.

Marcus não rejeita Young, Simon e Dylan como artistas. O que ele rejeita é a avaliação míope que atribui valor poético às suas letras em silêncio. O apelo poético de Hendrix é melhor expresso nas gravações, acompanhando a sua voz. Que o modo como Hendrix canta a palavra “anything”, entre 1:33 e 1:36 em “Little Wing”, é tão digno de atenção poética quanto um verso exaltado de Dylan imbricado em rimas.

Lirismo sofisticado

Em 2013, o ex-crítico da NPR Bill Wyman defendeu que Dylan deveria receber o Nobel. “Ele tem um lirismo sofisticado”, escreve Wyman. “Suas preocupações e temas são demonstravelmente atemporais, e poucos poetas de qualquer era já observaram sua obra tendo mais influência do que a dele”. Keith Richards, dos Rolling Stones, porém, vê a coisa de um jeito diferente.

Alguns dos motivos pelos quais as letras de música funcionam tão bem como poemas são os mesmos motivos pelos quais elas funcionam na gravação: a concisão lírica, talvez, mas também a superfluidade ocasional; a beleza imagética, mas também uma certa feiura calculada

“Eu não acho que os compositores do rock & roll devessem se preocupar com o artístico”, disse Richards certa vez. “Não acho que tenha a ver. Muito disso é só prática, afinal de contas, especialmente depois de anos fazendo a mesma coisa... o artístico é a última coisa na minha cabeça quando escrevo uma música. Não acho que seja importante de verdade. Se você quiser chamar de arte, OK, beleza, dá para chamar do que você quiser. Mas ‘Art’ para mim é apelido de ‘Arthur’”.

Richards captou algo aqui. Alguns dos motivos pelos quais as letras de música funcionam tão bem como poemas são os mesmos motivos pelos quais elas funcionam na gravação: a concisão lírica, talvez, mas também a superfluidade ocasional; a beleza imagética, mas também uma certa feiura calculada. Ao mesmo tempo, parte do que faz um bom poema pode prejudicar uma letra – a assonância, por exemplo, capaz de criar belas sonoridades no papel, pode atrapalhar a música na hora de ser cantada; ou uma riqueza imagética pode tirar o espaço necessário para a música respirar. Fica a esperança, então, de que esse reconhecimento da obra de Dylan possa nos inspirar a ouvir as letras – tanto as de Dylan quanto a de outros compositores – com novos ouvidos: como uma forma ao mesmo tempo musical e literária.

*Adam Bradley é professor de língua e literatura inglesa na University of Colorado, em Boulder, onde atualmente leciona a disciplina “A Poética das Letras de Canções Norte-Americanas”. É autor do livro “The Poetry of Pop” [A Poesia do Pop, em tradução livre], a ser publicado em breve.

Tradução: Adriano Scandolara
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