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O professor de literatura da Universidade Federal do Paraná (UFPR) Marcelo Sandmann comenta para a Gazeta do Povo a lista das 100 mais tocadas.

As letras, quase sem exceção, são em primeira pessoa. O “eu” (descartada a conjunção “que”) é a palavra que mais aparece na soma das letras. O que isso significa, em termos poéticos?

A canção popular tem como tema central a experiência amorosa, explorada de variadas maneiras. Costuma predominar o tom sentimental, ou romântico (no sentido mais corriqueiro do vocábulo), que aqui e ali cede espaço a um tom mais brincalhão ou malicioso, quando não abertamente erótico, a depender dos padrões de censura ou autocensura vigentes. Pensando nos gêneros poéticos tradicionais, podemos vinculá-la ao gênero “lírico”, que explora justamente a expressão dos afetos e experiências de uma determinada subjetividade, de um “eu”, portanto, muitas vezes em relação a um “outro”. A predominância da primeira pessoa, a princípio, é algo que não causa muita surpresa. Isso ocorre na poesia lírica de Luís de Camões ou de uma Adélia Prado, por exemplo. Ou nas letras de Vinicius de Moraes para temas musicais de Tom Jobim, Carlos Lyra, Baden Powell ou Toquinho. O que chama a atenção é a onipresença da temática amorosa e a circunscrição dessa temática a uma gama restrita de situações.

Todas as letras, sem exceção, tratam de relacionamentos amorosos. Esse “monotema” indica uma falta de preocupação com outros objetos?

Sim, as letras tratam exclusivamente de relacionamentos amorosos, o que chama especialmente a atenção, pois outros temas, mesmo que em menor escala, também costumam ser frequentes na canção popular. Um assunto muito presente, e com tratamento variado, seja, por exemplo, no samba dos anos 30 e 40, no baião dos anos 50, na canção de protesto dos anos 60 e 70, ou no rap mais recente é a questão social e/ou política, ausente dos exemplos aqui trazidos. O conflito não se dá apenas do “eu” com o parceiro amoroso ou algum rival, mas também em relação a situações de desigualdade social, carência material, opressão política etc.

Embora o sertanejo predomine, não há tematização da cidade, do campo, ou do deslocamento, por exemplo. Algum palpite sobre o motivo?

O “sertanejo” aqui já não pode ser entendido no sentido primeiro do termo, como uma música oriunda do “sertão”, ou do campo em oposição à cidade, e que apresentaria, portanto, questões como origem rural, deslocamento, nostalgia da origem, confronto cultural e social com o meio urbano ou adaptação a ele como assuntos importantes, conjugados à temática amorosa. O “sertanejo” aqui se define muito mais como um gênero já consolidado, com determinadas convenções de composição, arranjo, instrumentação e performance que remetem a uma certa tradição “sertaneja”, mas que na verdade já se deslocou em relação a ela. Trata-se de uma música absorvida pelo mercado, com um público alvo específico e que circula como um produto, dentro dos padrões que regem a produção e circulação de bens de consumo. Não é à toa que diante de toda essa onda, aparecem sempre aqueles que defendem o “sertanejo legítimo” ou a “música caipira de raiz”, o que daria espaço para vários outros questionamentos e reflexões.

Algum palpite sobre por que esses são os temas (e o gênero) que dominou as FMs? Certamente há outras produções, inclusive mais interessantes, que até já dominaram a cena em outros momentos. Há um “empobrecimento” da música brasileira?

Se considerarmos variedade formal e temática, maior complexidade musical e poética como valores positivos, há um evidente empobrecimento da música popular brasileira. Esse sertanejo urbano e massificado passou a dominar o mercado na passagem dos anos 80 para os 90 (Chitãozinho e Xororó, Leandro e Leonardo, entre outros) e hoje, com seus herdeiros, impera nas FMs de maior difusão e está muito presente nas televisões abertas, mas não só. Penso que em alguma medida é uma reação da grande indústria da música e do showbizz à ampliação da produção e fragmentação da circulação musical nas duas ou três últimas décadas, possibilitadas pelo barateamento das tecnologias de gravação e o acesso à internet como meio de difusão. A forças pluralizantes (democratizantes ou mesmo anarquizantes), contrapõem-se outras, centralizadoras. Uma questão de controle do mercado musical, portanto. Podemos pensar também nas mudanças sociais no Brasil das últimas décadas, com o advento da tão falada “nova classe média”, inserindo novos sujeitos no mercado de consumo, sem que a isso corresponda necessariamente algum tipo de transformação realmente significativa na formação educacional e cultural. Mas não sou completamente pessimista, até porque arte e cultura não devem ser medidas apenas por critérios quantitativos. Acompanho a cena musical contemporânea e sei que ela é de uma grande riqueza e variedade, para além (ou mesmo nas frestas) dessa que aparece na “grande vitrine”.

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