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Fraga (Irandhir Santos), Rosane (Maria Ribeiro) e Nascimento (Wagner Moura), mergulhado em profunda crise existencial e de valores | Divulgação
Fraga (Irandhir Santos), Rosane (Maria Ribeiro) e Nascimento (Wagner Moura), mergulhado em profunda crise existencial e de valores| Foto: Divulgação

De onde vem Donald Draper?

Em meados da década de 1950, surge em Hollywood um distinto subgênero dentro da tradição melodramática. Graças ao talento de cineastas como Douglas Sirk, Vincente Minnelli, Nicholas Ray e Elia Kazan, o chamado melodrama doméstico, cuja narrativa tem como foco a família nuclear, se utilizou das estruturas dramáticas peculiares a essa modalidade cinematográfica para discutir questões de gênero, classe e raça na sociedade norte-americana.

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Esta semana, a revista Veja estampou em sua capa uma imagem de Wagner Moura. Mas não era do ator baiano que estavam falando, mas sim de seu personagem nos filmes Tropa de Elite 1 e 2: o capitão Roberto Nascimento, do Batalhão de Operações Policiais Especiais da Polícia Militar do Rio de Janeiro, o Bope. A principal reportagem da publicação semanal da Editora Abril dava a ele o título de "herói brasileiro". Com certeza, muitos dos quase 10 milhões de espectadores que já viram o segundo episódio da saga dirigida pelo diretor José Padilha concordaram. Mas será que Nascimento, de fato, é um herói?

O psicoterapeuta e professor adjunto da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Sócrates Nolasco, discorre em seu livro De Tarzan a Homer Simpsonsobre como a concepção de herói tem sofrido profundas transformações no mundo moderno. Ele argumenta que, em sua concepção clássica, moldada a partir dos protagonistas dos poemas épicos homéricos Odisseia e Ilíada, nessa figura está presente a interseção entre o religioso, a ordem natural e social. "A representação social masculina é positivada quando funciona co­­mo agenciadora de esforços em­­preendidos pelo herói na direção dos ideais sociais e coletivos. Corresponde a uma das manifestações do divino."

Em contrapartida, Nolasco ar­­gumenta que, na passagem para o individualismo moderno, há um distanciamento do significado conferido ao que era considerado sagrado. "As sociedades contemporâneas abrem mão desta perspectiva [do herói munido de um dever divino de agir em nome do coletivo] , passando a configurar o sujeito como um solitário e abandonado", afirma o professor.

Portanto, um personagem com­­plexo como Nascimento, que, sobretudo no primeiro filme, recorre à violência como única forma de resolução de conflitos, ainda que em nome de uma visão pessoal e distorcida de Justiça e de bem comum, não se enquadraria na concepção clássica do mito do herói. E parece muito mais alinhado a uma concepção pós-moderna de sujeito.

Se, no longa-metragem original, ele já é retratado como um homem mergulhado em profundo estresse, crises de insônia e de pânico, que tensionam a sua relação com a esposa, Rosane (Maria Ri­­beiro), no segundo filme, esse quadro depressivo se agrava. Separado da mulher, com dificuldades de relacionamento com o único filho homem, Nascimento cai em desgraça dentro da própria corporação. Mas segue buscando levar a cabo o seu ideário de justiça, numa cruzada que agora se volta não apenas contra os traficantes que dominam as favelas do Rio de Janeiro, ou os consumidores de dro­­ga da classe média que alimentam esse comércio ilegal. Ele tem como alvo os agentes do Estado – policiais mi­­litares, deputados, o governador –, que realimentam essa ordem perversa.

Só que, pelo menos quase até o desfecho da trama, ele segue lançando mão, sem muito foco ou critérios defensáveis, de expedientes de violência.

Chamar Nascimento de herói, portanto, é ignorar que ele é um homem perturbado, doentio. A atribuição ao personagem de qualidades da ordem do sagrado, se­­gundo os modelos míticos, acionados na direção dos ideais sociais e coletivos, é uma simplificação pe­­rigosa do personagem, Mesmo que seja assim que boa parte do público o enxergue, ingnorando o fato de que, tanto no primeiro como no segundo episódio, o policial se aproxima muito mais desse ho­­mem da pós-modernidade, ilhado, abandonado pela família, com enorme dificuldade para se relacionar com o mundo.

É exemplar o antagonismo entre Nascimento e o ativista pelos Direitos Humanos, e depois deputado estadual, Diogo Fraga (Irandhir Santos). Apresentado como inimigo do protagonista – é um crítico da ação do Estado e da polícia, casou-se com a mulher de Nascimento e conquistou o filho do policial –, Fraga, sim, é revelado como um possível e contemporâneo modelo de herói. Há nele o intuito de ir além do confronto maniqueísta, e tentar compreender os fatores geradores da contravenção. Isso se torna claro na se­­quên­­cia em que tenta impedir que a rebelião no complexo penitenciário de Bangu seja resolvida à base da força, sem diálogo. Seu esforço, no entanto, é em vão. A violência prevalece.

Será Fraga, todavia, que servirá a Nascimento de modelo de ho­­mem para que, mesmo que a contragosto, o policial inicie um processo de autocrítica, de reavaliação de seus valores e métodos. Sobretudo quando seu filho é atingido por uma bala destinada ao padrasto. O aparente "inimigo", nesse mo­­mento trágico, que reaproxima Nas­­cimento do âmbito do sagrado, acaba por assumir o papel de aliado – e talvez de guia – numa luta muito mais complicada e, aparentemente, sem fim.

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