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O escritor Carlos Heitor Cony acaba de lançar reunião de crônicas com paladar autobiográfico, embora insista que não tem interesse em contar a história de sua vida | Folhapress
O escritor Carlos Heitor Cony acaba de lançar reunião de crônicas com paladar autobiográfico, embora insista que não tem interesse em contar a história de sua vida| Foto: Folhapress

Autor retornou à ficção após 22 anos

A volta de Cony à literatura, 22 anos depois, se deu por obra e graça de uma cachorra terminal (esta sim), a Mila (homenageada com uma crônica em Eu, aos Pedaços.) Em 1995, enquanto Mila agoniza aos seus pés, ele escreve Quase Memória, misto de ficção e lembrança, um sucesso que o traz de volta à crítica e à mídia.

A seguir, publica A Casa do Poeta Trágico, romance passado em Pompeia, a cidade sepultada pelas cinzas do Vesúvio. Cony lembra que é de Pompeia a primeira placa na história sobre cachorros, Cave Canem (Cuidado com o cachorro.) Por essa época, o filme Sociedade dos Poetas Mortos ressuscita o lema hedonista do poeta romano Horácio, Carpe Diem:, aproveite o dia, ou o momento. Também amigo dos cães, sugiro a Cony a inversão das frases: Carpe Canem e Cave Diem – "aproveite o cão" e "cuidado com o dia."

E a consagração literária, Cony? Os três maiores escritores do século 20 – Joyce, Kafka e Proust – morreram sem saber que o eram. Cony traduz a coisa de maneira mais simples: "O sujeito se prepara a vida inteira para escrever sua obra-prima. Publica, o que é quase um milagre. Tem certeza de que seu livro vai mudar os destinos do mundo. Compra todos os jornais e todas as revistas. Nenhuma linha. Espera, espera e nada acontece. Então se desespera – ninguém tomou nenhuma providência...". Essa noção da pouca (ou nenhuma) importância do escritor, do ser humano e do mundo é essencial à vida e à obra do Cony.

Na Manchete somos cúmplices na molecagem. Uma de nossas curtições particulares é Adolpho Bloch. Não o patrão autoritário. Admiramos a complexa figura humana. Em seus fabuloso castelo à beira-mar plantados, Adolpho rejeita o escritório suntuoso e se limita a ocupar um espaço mínimo: os dez centímetros quadrados na mesa da secretária Marta, onde finca o cotovelo e dispara telefonemas o dia inteiro. A cultura do Adolpho é verbal, nele não vale o escrito. E fala direto do inconsciente. Sabe o que quer dizer, mas precisa do Cony para colocar no papel sua página semanal na Manchete.

A confecção do artigo obedece a um elaborado ritual, em que os luminares da empresa são consultados. Finalmente, as vésperas do fechamento da revista, Adolpho convoca uma meia dúzia de fieis, e pede palpites. Seu artigo é uma obra coletiva, mas com o tom pessoal que o Cony lhe imprime.

Certa vez, quando o Teatro Adolpho Bloch levava O Homem de La Mancha, Adolpho quis enxertar no artigo um trecho da canção "Sonho Impossível". Nenhum dos intelectuais de plantão conhecia a letra. Alguém lembrou que a recepcionista do teatro sabia tudo da peça. Com o terninho de sua função, Mary foi convocada para subir ao oitavo andar e cantar o "Sonho Impossível" diante da cúpula da Manchete. Saiu-se bem, o que lhe valeu uma bela carreira de secretária na Bloch.

Acompanhando o Adolpho em todas as horas, Cony amealhou histórias incríveis do capo. Os dois passavam um dia por Vila Isabel, onde a família Bloch morou nos primeiros tempos de Brasil. Adolpho aponta excitado um velho prédio no Bulevar. Adolpho: "Era ali que ele morava." Cony: "Ele quem, Adolpho?" Adolpho: "O Corcunda de Notre Dame."

No prédio, ficava um antigo cinema onde Adolpho viu uma das primeiras versões filmadas do romance de Vítor Hugo. Por essas e muitas outras, Cony criou um lema em latim para Adolpho, um dístico de brasão: DEMENTIA OMNIA VINCIT, "A demência tudo vence".

Advertência ao leitor: O Carlos Heitor Cony mencionado neste artigo pode não ser o Carlos Heitor Cony pessoa física registrado em cartório. Segundo uma história que o próprio Cony não se furta (mas se farta) em contar, na mais tenra infância, durante uma distração de sua mãe, uma cigana trocou o verdadeiro Carlos Heitor Cony por seu filho cigano, que tomou o seu lugar no lar dos Cony. A Equação do Estranhamento Existencial de Rimbaud (JE EST UN AUTRE = EU É UM OUTRO) vale para Cony no sentido literal.

Humanista que se renega, Cony é brilhante no labirinto de suas contradições. Do seminarista que um dia sonhou em ser Papa, restou o gosto pelo ofício único e final, expresso na crônica "Autorretrato": "A busca transformou-se num retorno – por isso, talvez, minha atividade mais constante é escrever. Um gesto tão infantil como o de escovar os dentes, sentir na boca o gosto da espuma crescendo. Um rito infantil que talvez nunca tenha mudado, é sempre o mesmo."

  • Na redação da revista Manchete: da esq. para a dir.: Alberto Carvalho, Ivan Alves, Wilson Cunha, Flávio de Aquino, Roberto Muggiati, Heloneida Studart, R. Magalhães Jr, Wilson Passos, Argemiro Ferreira, Pedro Guimarães, Ney Bianchi, Carlos Heitor Cony, Irirneu Guimarães. (Ao fundo, o contínuo Sammy Davis Jr.) Sobrevivem: Alberto Carvalho, Wilson Cunha, Roberto Muggiati, Argemiro Ferreira e Carlos Heitor Cony (Não se sabe do Sammy Davis...)

Dias de chumbo, Dias de dúvida. Dias de sexo, drogas & rock-and- roll. Dias de contestação, em que o fim podia estar logo ali, dobrando a esquina. Já dizia a canção, "É preciso estar atento e forte, não temos tempo de temer a morte." Em 1969, eu dirigia a Fatos&Fotos, revista semanal que concorria com a própria Manchete. Toda vez que ameaçava o carro-chefe da empresa, a F&F era brutalmente posta no devido lugar. Durei um ano no cargo e fui parar na redação da Manchete.

Um flash-forward de 40 anos: estou na Livraria da Travessa-Leblon, Rio de Janeiro, no lançamento do novo livro de Carlos Heitor Cony, Eu, aos Pedaços, uma seleção de crônicas autobiográficas. ("Não sou foguete da Nasa para ter lançamento", ele costuma dizer, mas abre exceções).

Antes dos autógrafos, Cony bate bola com Ruy Castro. Os dois vêm fazendo tabelinhas verbais há décadas. Cony dá o ponta-pé inicial e afirma que toda autobiografia é mentirosa. Exemplifica: o presidente JK insistia que nascera em 1902, quando os documentos registravam 1900. Aos 70, JK fazia questão de ser dois anos mais jovem e reclamou de Adolpho [Bloch] quando a Manchete publicou a data correta.

Responsáveis pelo "erro histórico", Zevi Ghivelder, R. Magalhães Jr e eu fomos crucificados por Adolpho Bloch: "Vou demitir este cabeludo filho-da-mãe!" Cony veio ao meu socorro e recomendou: "Muggiati, coloque sua mesa atrás da coluna." Escondido atrás da larga pilastra de mármore do Niemeyer, fiquei a salvo da fúria de Adolpho.

O Cony sempre foi uma Madre Teresa dos perseguidos. As demissões na Bloch, bruscas e intempestivas, vinham em ondas, como os pogroms dos cossacos na Rússia czarista, pogroms que a família Bloch sofreu, antes de fugir para o Brasil. A gíria da redação anunciava: "O passaralho está voando!" Cony conseguiu livrar do olho-da-rua 90% dos demitidos, um feito para alguém que se professa descrente do mundo.

No "Roteiro", texto de Eu, aos Pedaços, ele reitera: "Sou contra a exata compreensão dos meus di­­reitos de cidadão e contra o impostergável dever de solidariedade. Sou contra as injunções de ordem econômico-social e contra a voz da consciência."

Voltando a 1970: escrevi na Manchete o necrológio do Jimi Hendrix. Cony gostou do texto e me levou para a EleEla, a revista mensal que dirigia, dois andares abaixo do teatro de guerra que era a Manchete. Às cinco e meia, Cony fechava as cortinas e lotava seu carro de caronas para Copacabana, com direito a uma parada na confeitaria Chuvisco, no Leme, para comer doces.

Escrevi um longo texto para a EleEla, que foi o embrião do meu livro Rock: o Grito e o Mito. O título rimado ecoava O Ato e o Fato, o livro com que Cony confrontou a ditadura militar já na primeira hora, em 1964. Não que fosse esquerdista. Ele tem horror a "ismos" e facções. Cony era contra a tirania e insistiu na sua campanha pessoal. Foi demitido do Correio da Manhã.

Em 1965, fez parte dos "Oito do Glória", uma manifestação contra o presidente Castelo Branco. Fo­­ram todos presos. Do episódio, Cony lembra com humor a manchete de um jornal argentino: PATEARON EL MARISCAL!

Em 1966, a grande questão, fustigada por Che Guevara, passou a ser: suportar a ditadura ou pegar em armas? Três dos "Oito do Glória" transformaram o dilema em obra de arte: Glauber Rocha (Terra em Transe), Antônio Callado (Quarup) e Cony (Pessach: a Travessia). Fugindo da militância, ele se define como "um anarquista humilde, triste e inofensivo." Com ironia, canibaliza o jargão das esquerdas ao filosofar sobre a morte: "Outra noite, fui ao velório de um amigo no São João Batista e me deu vontade de já ficar ali, de queimar etapas."

Os clichês também são apropriados por Cony. Ainda o "Roteiro" de Eu, aos Pedaços: "Sou contra o apaziguamento dos espíritos e contra as inalienáveis prerrogativas da pessoa humana. Contra os lídimos representantes das classes produtoras, contra os autênticos interesses de nossa soberania e contra os sagrados postulados da civilização cristã". Quanto à morte, desde os anos 80, ouço o Cony fugir de certos compromissos com a desculpa: "Não posso, Muggiati, eu sou um terminal." É o terminal mais longevo que conheço.

Em 1975, os papéis se invertem e eu me tornei chefe do Cony, co­­mo editor da Manchete. Hesito ao designar trabalhos para ele, que é o redator-estrela da Bloch e amigo do Rei (Adolpho). Mas o maquivélico Adolpho me pressiona para arrancar o máximo do Cony. É uma década de grandes crimes e Cony brilha nesta área.

Fantasia-se de médico para fazer um perfil do Monstro de Ipanema. Pula acrobaticamente muros da casas vizinhas para uma entrevista exclusiva com Roberto Medina, recém-liberado de um sequestro. Cobre em Cabo Frio o histórico julgamento de Doca Street (assassino da Pantera de Minas Ângela Diniz). Investiga o caso Lou e Van, batizando a bela morena assassina de Mona Lou (Rubem Gerchman a transforma em pintura).

Com JK escreve as memórias do presidente para a Bloch. Viajou no avião do Papa na primeira visita de João Paulo II ao Brasil, que resulta num livro da Bloch, Nos Passos de João de Deus. São tarefas utilitárias demais para o talento de Cony, uma brecha abissal na sua carreira de escritor.

Publica um livro que define como o derradeiro, uma brincadeira muito séria: o escatológico Pilatos – A História de um Homem Castrado, alegoria que lhe cabe como uma luva. Pilatos termina com a definição de que os homens felizes são apenas mal-informados. Nessa fase em que se torna "pena de aluguel", Cony mergulha fundo no papel de mercenário. Na melhor tradição dos ex-se­­minaristas, arde na culpa, se martiriza e depois apela para o cinismo. "Eu sou venal, Muggiati", confessa-me quando resolve redigir artigos para um norte-americano (suposto agente da CIA) em troca de charutos cubanos.

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