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| Foto: Pierre Andre Leclercq/Wikimedia Commons

Faxes apagados transbordam da pasta de arquivos. A folha no topo da pilha contém uma breve descrição do que veio a ser meu primeiro episódio de mania confirmado por médicos – isso há mais de 20 anos –, quando fui admitida ainda adolescente no Instituto de Neuropsiquiatria da Universidade da Califórnia: “Ritmos psicomotores acelerados, diminuição de necessidade de dormir (cerca de duas a três horas por noite), pensamentos agitados e fantasias paranoicas que a fazem pensar que seus pais a seguem e vigiam, e que gravam suas conversas telefônicas”.

O relatório dizia que eu achava ter superpoderes, que sabia “de substâncias tóxicas que acabariam com o mundo” e achava ser a única capaz de impedir o desastre. Havia também uma descrição elaborada de como eu usaria uma bolsa de estudos para entrar na Universidade de Yale – uma empresa a financiaria em troca de trabalho depois que eu me formasse (outro delírio típico: eu não passava de uma aluna mediana).

De quantos terapeutas você precisa para resolver um problema?

A primeira vez que eu me sentei na frente de uma psicóloga disposta a me ouvir foi quando eu tinha 31 anos e as coisas se desenrolaram mais ou menos como eu havia antecipado.

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Depois de ter sido admitida na ala adolescente do instituto, eu acreditava que tanto os médicos quanto as enfermeiras e as terapeutas estavam tentando me envenenar. Bem como a tevê na sala de recreação. Adverti minha única amiga lá que os raios saindo da tela estavam tentando matá-la também. O aquecedor na verdade bombeava gás para dentro dos quartos porque o lugar – estava certa disso – era um campo de concentração.

Eu me recusava a tomar minha medicação porque era óbvio que ela acabaria me matando. Eram necessários cinco pessoas para me medicar: quatro enfermeiros para me pregar no chão e uma enfermeira que fincava uma seringa na minha coxa esquerda.

Com o passar do tempo cansei de relutar, ou talvez tenha sido o coquetel de psicotrópicos fazendo efeito.

O copo de plástico cheio de comprimidos incluía lítio, que passou a controlar, lentamente, meus episódios de mania. Depois de algumas semanas, parei de sussurrar para os outros pacientes que seríamos todos assassinados. Logo, eu mesma não acreditava mais nisso.

A vida com lítio

Minha luta de 20 anos contra o transtorno bipolar

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Mark DeAntonio, o psiquiatra da Universidade da Califórnia em Los Angeles que estava me tratando, disse que eu tinha transtorno bipolar. Essa é a descrição tirada do Instituto Nacional de Saúde Mental. “Estados emocionais bastante intensos que ocorrem em períodos chamados de ‘episódios de perturbação do humor’. Cada episódio de perturbação de humor representa uma mudança drástica dentro do que vem a ser o comportamento e humor normativos do indivíduo. Um estado de alegria demasiada é chamado de episódio de mania, enquanto um episódio de tristeza extrema e desespero chama-se episódio depressivo.”

A definição genérica não abrange exatamente os extremos da doença e seus sintomas, que incluem autoestima inflada, insônia, verborragia, pensamentos agitados e tendência a certas atitudes que, segundo a conceituada Mayo Clinic, “tem um potencial elevado para acarretar consequências desastrosas como impulsos de compra desenfreados, leviandades sexuais e investimentos completamente furados”.

Eu tinha só 17 anos, jovem demais naquela época para receber um diagnóstico de transtorno bipolar. A maioria das adolescentes na ala do hospital estava lá por distúrbios alimentares ou depressão. Eu tinha que fazer minhas refeições sozinha porque minha dieta não precisava ser monitorada ou restrita como a dos outros.

Durante a terapia ocupacional, eu fabricava mocassins e jogava vôlei com as meninas do transtorno alimentar nas horas de recreação. Passei de arranhar as paredes da minha solitária acolchoada a ter privilégios como poder assistir à tevê segurando o controle remoto e até escolhendo o canal. Visitantes iam e vinham trazendo balões e cartões de “melhoras” e até um pôster assinado por todos os meus amigos da escola.

A primeira opção

O lítio, um estabilizador de humor que ajuda a impedir os ciclos de mania, é geralmente a primeira opção no tratamento de pacientes bipolares; acaba sendo eficaz na maioria dos casos. Inclusive no meu. Recebi alta do hospital e voltei para a escola com um hematoma do tamanho de uma maçã na coxa. Por duas décadas desde então, tenho tomado lítio quase que continuamente. Ele restringiu minha mania, minha depressão e, acima de tudo, os selvagens ciclos delirantes que me deixavam obcecada com coisas como o valor do número zero ou a criação de uma comuna hippie (meu uniforme na época: calça boca-de-sino, top psicodélico e glitter no corpo todo).

Desde que tome aquelas três cápsulas rosa de carbonato de lítio diariamente, funciono normalmente. Do contrário, vão me achar no topo de algum vagão de metrô tentando calcular a velocidade do trem ou procurando por luz em um plano superior.

“Gota cerebral”

O uso do lítio como terapia para doenças mentais data do período Greco-Romano, quando as pessoas se banhavam em termas minerais ricas em alcalina para aliviar tanto a “melancolia” quanto a “mania”.

Em meados do século 19, acreditava-se que o lítio curava gota e às vezes “gota cerebral”, uma descrição no mínimo curiosa para a mania, estendendo a noção de juntas inchadas para um cérebro inchado.

O elemento recebeu esse nome por causa do lithos, palavra grega que significa pedra, e lítio é de fato encontrado em granito – e também em água salgada, termas minerais, meteoritos, no sol e em todas as estrelas e pessoas. E classificado como um metal na tabela periódica de elementos. Foi identificado pela primeira vez em forma sólida em um mineral conhecido como castorita encontrado na ilha sueca de Utö em 1817.

Um ano depois, cientistas descobriram que o lítio, quando moído em pó, deixava as chamas de fogo muito mais vermelhas – até hoje ele é o ingrediente principal usado em fogos de artifício. Impetuoso e instável, o lítio de alguma maneira acalma estados emocionais geralmente caracterizados da mesma forma.

Embora o uso do lítio tenha sido benéfico durante milênios, como ele age no cérebro humano permanece um enigma. “Ele propulsiona a assim chamada atividade trófica e fertilizante no cérebro – ou seja, estabiliza membranas”, explica James Kocsis, professor de psiquiatria na Weill Cornell Medical College em Nova York e especialista em lítio. Mas os detalhes de como isso acontece são desconhecidos.

Uma forma de entender seus efeitos foi sugerida por um estudo publicado pela Universidade da Califórnia em 2007. Ele descobriu que pacientes que sofriam de transtorno bipolar tinham mais massa cinzenta que pacientes sem o transtorno, especialmente na região associada com a capacidade do indivíduo em manter atenção e controle emocional.

Uma das primeiras referências do lítio num contexto neurológico aparece em 1870, feita por um neurologista em Filadélfia chamado Silas Weir Mitchell, que recomendou o composto de brometo de lítio como um anticonvulsivante e hipnotizante para pacientes epilépticos. Em meados da virada do século, ele já era amplamente usado em outros tratamentos.

Em 1947, John Cade, psiquiatra que trabalhava num hospital em Melbourne, na Austrália, redescobriu seu potencial medicinal. Cade estava entre os pioneiros que concluíram que doenças mentais incluíam manifestações físicas e que deveriam ser tratadas com medicamentos e não apenas com terapia convencional. “Foi necessário mudar o modo como as pessoas entendiam as doenças mentais”, diz Robert Beech, professor assistente de psiquiatria na Universidade de Yale e responsável por conduzir estudos médicos com lítio. Ele descreve essa descoberta como uma mudança de “explicações mais psicológicas e Freudianas para outras mais biológicas”.

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Cade, cujo pai também era psiquiatra, a princípio buscava apenas uma maneira de isolar a causa da mania. Ao perceber que a urina dos pacientes maníacos se distinguia da dos pacientes estáveis, ele descobriu o componente extra, acido úrico, que era responsável pela mania. Visando gerar esse mesmo tipo de estado maníaco em suas cobaias, ele precisava de uma solução na qual pudesse fornecer o ácido úrico para elas, e experimentou usando urato de lítio (e mais tarde carbonato de lítio). Contudo, suas cobaias tornaram-se letárgicas; ao invés de induzir mania, ele havia acidentalmente descoberto um tratamento.

Cade estava convencido que o lítio poderia curar muitos de seus pacientes que apresentavam sintomas similares ao que associamos com esquizofrenia, transtorno bipolar, transtorno de stress pós-traumático e demência. Para testar a segurança do tratamento, ele mesmo ingeriu a substância; e mais tarde começou um experimento com 19 pacientes. Dez maníacos tiveram uma mudança significativa tanto no humor quanto em suas funções, mas os intervalos e as dosagens estabelecidas por Cade ainda não eram precisas e um de seus pacientes morreu, provavelmente devido a uma superdosagem.

No fim dos anos 40, o uso do lítio como substituto para o sal de cozinha em pacientes que sofriam de insuficiência cardíaca nos Estados Unidos acabou sendo letal em pelo menos duas ocorrências.

Embora esses resultados tenham dificultado o uso do lítio em larga escala, estudos com a substância prosseguiram em diversos países. À medida que as dosagens alcançavam certa uniformidade e que o monitoramento cauteloso se tornou uma rotina do tratamento, lítio em vários compostos foi reconhecido como um tratamento aceitável.

Em 1961, glauconato de lítio foi aprovado na França, carbonato de lítio na Inglaterra em 1966, acetato de lítio em 1967 na Alemanha e glutamato de lítio na Itália em 1970. Entre os defensores da droga estava um médico residente americano chamado Ronald Fieve, que começou a experimentar com ela em 1958, após seu assessor na Universidade da Columbia retornar da Austrália com histórias sobre os experimentos de Cade. “Era extremamente eficaz,” me disse Fieve, contando como ele estava “tratando até os pacientes com os distúrbios bipolares mais sérios, e esse lítio os trazia de volta a normalidade em coisa de dez, 15 dias”.

Foi só em 1970 que Fieve – então médico graduado – e outros quatro psiquiatras de renome pressionaram a Administração Federal de Alimentos e Medicamentos (FDA) para aprovar o lítio como medicamento psiquiátrico. “Eles ficaram relutantes a princípio”, diz Fieve, “mas trouxemos dados suficientes que comprovavam que esse era um medicamento extraordinário para o tratamento do transtorno bipolar e, se ele fosse monitorado adequadamente, seria seguro”.

Ricard Alonso Vicent/Wikimedia Commons

Fieve assegura que o lítio ainda não foi extensivamente testado para o tratamento de outras doenças em parte porque se trata de uma substância natural: elementos da tabela periódica não podem ser patenteados. Indústrias farmacêuticas contam com incentivos quase nulos para promover a substância ou desenvolver outros usos para ela apesar de seu potencial.

No tratamento do mal de Alzheimer, o lítio se mostrou bastante eficaz, bem como num estudo no Japão que demonstrou que a população que ingeria água da torneira contendo lítio estava menos propensa a cometer suicídio. Durante os anos 1930 e 1940, o refrigerante 7-Up incluía lítio em sua fórmula como um propulsor de humor. Havia também “cervejas de lítio” e até mesmo uma versão da Coca-Cola com a substância.

Recentemente, um psiquiatra levantou a seguinte questão na página de opinião do jornal “The New York Times”: “Será que não deveríamos todos tomar um pouquinho de lítio?”.

Apesar de seu uso generalizado como estabilizador de humor, apenas 5% de toda a produção de lítio é aplicada na medicina. O resto é usado em coisas como cerâmicas, vidros e baterias. As indústrias tecnológica e eletrônica estão cada vez mais dependentes do elemento. Em breve, uma nova rodovia vai conectar a única mina de lítio em operação nos Estados Unidos, a Rockwood Lithium, em Silver Peak, Nevada, até a parte norte do estado, onde o empreendedor Elon Musk está construindo uma gigantesca fábrica de milhões de dólares para produzir baterias de íon-lítio usadas em carros Tesla.

Muito provavelmente é de lá que minhas cápsulas rosa vêm. Em maio passado, visitei Silver Peak, onde David Klawitter, um mecânico trabalhando na mina, mostrou-me suas mãos vermelhas inchadas. “O lítio às vezes queima”, disse. “Também acaba com nossas tomadas, as corrói por completo. De uma olhada no que faz com os caminhões.”

Em meados dos anos 1960, a empresa predecessora a Rockwood, Foote Mineral, situou sua fábrica exatamente nessa região desértica após estabelecer um método que extraía lítio a partir de salmouras subterrâneas. “Extraímos lítio medicinal aqui”, disse Klawitter. “Estamos processando lítio em sua forma mais pura.”

Ao longo de uma estrada empoeirada longe de Silver Peak, está a Alkali Hot Spring, outrora local de acampamento para mineiros e desbravadores como os Irmãos Earp, que buscavam ouro na virada do século. Atualmente, mangueiras jorram água de lítio, em temperaturas de até 38ºC, vindas de fontes e depositadas em duas caixas d’água ainda usadas pelos moradores da região.

Um reservatório de lítio, responsável por cerca de 50% do fornecimento mundial, fica sob a planície do Salar de Uyuni, ao sul da Bolívia.

A crescente demanda global pela substância tem sido o motivo de diversas declarações, incluindo alegações dos próprios bolivianos de que, por ser o país socialista que é, logo se tornará a “Arábia Saudita do lítio”.

Há décadas, economistas fazem previsões de uma economia dependente de lítio e talvez não demore muito para que cada carro, computador e aparelho eletrônico – sem mencionar nossos reservatórios de energia – dependam de baterias de lítio do mesmo modo que eu dependo da substância há mais de duas décadas.

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