
Há uma bela ambiguidade incidental no subtítulo do livro “O Gene”, do cientista Siddhartha Mukherjee. “Uma história íntima” pode tanto se referir às razões que levaram o escritor a se debruçar sobre a genética e suas descobertas – sua árvore genealógica compreende, do lado paterno, pelo menos três parentes próximos com casos de esquizofrenia – como também pode falar diretamente ao aspecto único e pessoalíssimo do DNA: somos todos moldados pelos nossos genes, o que há de mais monolítico nos fatores que podem determinar nossas características.
Pesquisador workaholic, Mukherjee, que já havia brindado o mundo com uma história sobre o câncer em O Imperador de Todos os Males, vencedor do prêmio Pulitzer em 2011, traz agora um relato minucioso que tem a intenção pouco modesta de compilar em ordem cronológica todos os avanços a respeito da genética, mesmo admitindo,ao final, uma história sem desfecho.
Das primeiras conjecturas aristotélicas a respeito da reprodução humana, passando pelas ervilhas de Mendel, pela revolução de Darwin e pelo projeto genoma, até chegar aos dias atuais, o biólogo, médico e professor da Universidade de Columbia, nos Estados Unidos, ao mesmo tempo em que esmiúça as particularidades das descobertas científicas em uma vida acadêmica humana, demasiadamente humana (veja o box ao lado), mostra, por meio de uma prosa erudita e sofisticada, que a genética tem a capacidade não só de encantar, mas também de embriagar sociedades inteiras: o que começou com uma tentativa de se livrar de doenças hereditárias logo se transformou em centros de eugenia e no pesadelo nazista criado por Josef Mengele e seu charlatanismo médico.
Infelizmente, o livro peca em suas minúcias muito especializadas e pouco interessantes para um público leigo, tornando-se excessivamente “científico” em suas páginas centrais.
No início de cada parte em que a obra se divide, o autor conta um pouco mais da história de sua família, atormentada pelos transtornos mentais de dois tios e um primo. A narrativa se afasta do potencial melodrama e, de maneira sensível e sutil, coloca a impotência do cientista frente ao mistério da vida. Mesmo com o modelo de Watson e Crick, o projeto genoma, a clonagem e tudo o que se sabe sobre as células-tronco, sabe-se apenas que há um fator hereditário para a esquizofrenia, mas até hoje não foi encontrado o gene causador do distúrbio.
Para todos os outros efeitos, a descoberta do gene é uma revolução que, segundo Mukherjee, sempre terá o potencial de redefinir o modo como pensamos a nossa sociedade. O conhecimento de um “DNA defeituoso” pode se chocar colossalmente com a bioética – para quem não se recorda, o professor e divulgador científico Richard Dawkings causou furor em 2014 ao afirmar que dar a luz a bebês portadores da Síndrome de Down seria “imoral”. Da mesma maneira, a terapia gênica, que introduz células-tronco para combater deficiências do DNA, encontra uma barreira na moral dogmática de algumas instituições religiosas.
Mais importante do que isso, porém, é que o DNA, embora inescapável, não é determinante. Na analogia do autor, não se trata de um planta baixa, mas de uma receita, e as interações entre as partes interessam tanto ou mais do que a formação dessas partes. Mutações, fatores ambientais e uma intrincada miríade de variantes colocam uma venda sobre os olhos da evolução, e tornam mais difícil responder à grande pergunta: afinal, o que nos faz sermos como somos?
Em 2014, a atriz Angelina Jolie fez uma dupla mastectomia preventiva porque descobriu um defeito hereditário no gene BRCA1, que aumenta a propensão ao câncer de mama em 87%. A notícia chocou o mundo pelo radicalismo do procedimento, mas a decisão da atriz é uma consequência natural que a difusão do autoconhecimento genético ao público permitirá. Nos Estados Unidos, a empresa 23andMe (referência aos 23 cromossomos humanos) permite ao cliente que, por cerca de 100 dólares, receba um tubo de ensaio em casa. Basta cuspir no tubo, mandá-lo de volta pelo correio e esperar. Uma lista detalhada de características genéticas, incluindo a propensão para uma dezena de doenças, chega pouco tempo depois. Gradativamente, o gene, essa estrutura tão íntima, vai também se tornando mais próximo de nós. Resta saber o que será feito com todo o conhecimento que ele trará.



