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O Velho Mestre- O mestre idoso enfeixa sabedoria e domínio marcial. Nem sempre, porém, é um personagem benevolente - o melhor exemplo disso é Pai Mei o cruel e zombeteiro mestre de Kung-Fu de filmes como Kill Bill |
O Velho Mestre- O mestre idoso enfeixa sabedoria e domínio marcial. Nem sempre, porém, é um personagem benevolente - o melhor exemplo disso é Pai Mei o cruel e zombeteiro mestre de Kung-Fu de filmes como Kill Bill| Foto:

Monges boxeadores, bandidos apaixonados, donzelas furiosas e seres fantásticos são personagens wuxia. Expostos a governantes corruptos, injustiças ou em jornadas extraordinárias, eles há muito cativam multidões na Ásia. O segredo do sucesso parece residir na capacidade de fundir elementos desejados por diferentes tipos de leitores, de adolescentes loucos por aventuras a pessoas mais velhas, saudosas dos "bons tempos d‘antanho". Uma capacidade, enfim, de produzir histórias com notas arquetípicas.

"A leitura de novelas wuxia é um costume que muitos chineses cultivam na adolescência e que segue por toda a vida", diz o professor de mandarim Pablo Chang, do Centro de Línguas da UFPR e do Centro Cultural Tomodachi - ele próprio, um chinês apaixonado pelo gênero. "Essas novelas contribuem para transmitir valores. Deles, o mais importante é a justiça, que envolve honra e compromisso, muitas vezes com os menos favorecidos. No pensamento tradicional, o compromisso é mais importante do que a vida."

A aproximação entre valores e literatura, explica, se deu já na origem do gênero, na chamada Era dos Reinos Combatentes (480 a 221 a.C.). O período, marcado pela fragmentação do império Zhou e por disputas por sua reunificação, também é caracterizado por debates intelectuais que deram origem ao Confucionismo, ao Taoísmo e à estrutura burocrática baseada na figura do shì, o servidor público não nobre reconhecido por seu talento.

Os shì, aliás, são a forma essencial dos personagens wuxia: al­­guns de seus mais célebres protagonistas eram servidores públicos envolvidos em disputas com bandidos ou nobres locais corruptos. Eles também são o ponto de partida de outro personagem oriental, japonês, que fascina o mundo: o samurai, que também era conhecido como bushi – literalmente, "servidor militar".

Mo Tzu e wuxia

A aproximação entre histórias de aventura e valores humanos, observa Chang, acontece com Mo Tzu, filósofo nascido no final do século 4 a. C., entre a morte de Confúcio e o nascimento de Mêncio, os mais influentes pensadores chineses. Contrário ao ritualismo confucionista e pragmático, Mo Tzu valorizava a capacidade individual, a razão, a fraternidade, a frugalidade, o pacifismo e a justiça – atributos dos heróis wuxia.

Em 2.300 anos, autores do gênero wuxia produziram milhares de histórias. Os enredos mesclam personagens e situações reais e ficcionais; alguns dos heróis, aliás, nem humanos são – caso de Sun Wu Kong, o excêntrico macaco de Jornada para o Oeste, obra publicada no século 16. O livro narra as aventuras do monge budista histórico Xuanzang, da Dinastia Tang (618 – 907 d.C.), em sua viagem à Índia em busca de sutras. Outras novelas fundamentais do gênero são À Margem das Águas, sobre fora-da-lei da Dinastia Song (960 – 1279); O Romance dos Três Reinos, a respeito dos principais heróis históricos do período de mesmo nome (220 – 280 d.C.); Sete Cavaleiros e Cinco Heróicos, com as histórias de Lorde Bao, personagem da Dinastia Song célebre pelo talento detetivesco e pelo senso de justiça; e A Heróica Lenda de um Filho e uma Filha, novela da Dinastia Qing (1644-1912) que tem como elementos centrais a virtude feminina e o amor trágico.

Das obras citadas, três – Jornada para o Oeste, À Margem das Águas e O Romance dos Três Reinos – se contam entre os chamados Quatro Clássicos da Literatura Chinesa.

O futuro da espada

Ao falar sobre o futuro do gênero wuxia na China, Pablo Chang observa que as mídias eletrônicas estão substituindo as formas anteriores de criação e difusão das histórias. "Essas histórias também eram transmitidas pelo teatro, ópera, música e contação de histórias. Hoje, estão nas novelas da tevê, em filmes, jogos eletrônicos e histórias em quadrinhos."

O professor de mandarim destaca um aspecto inusitado e positivo dessa "migração de mídias". Segundo ele, muitos jovens se aproximam da História e dos valores chineses a partir do lazer fornecido pelos games. Como muitos deles se baseiam no wuxia, e como o gênero guarda relação com o passado, o interesse é transportado para o campo do conhecimento. "Eu sou exemplo disso: quando adolescente, era apaixonado por um jogo baseado no Romance dos Três Reinos. De tanto gostar de jogar, resolvi ler o livro. Gostei tanto do livro que acabei buscando livros sobre a História do período."

Perguntado sobre a influência do pensamento político chinês atual na produção e difusão do wuxia, Chang acredita que ela não seja tão significativa, em especial porque as histórias são ambientadas em períodos remotos. Isso, segundo ele, transfere as críticas e imaginário para o passado. "Os momentos históricos mais citados nas obras são as dinastias Song e Yuan, há centenas de anos. Além disso, as histórias se desenrolam nos momentos mais turbulentos desses períodos. Hoje, quando o governo chinês está muito confiante em sua própria situação, não creio que exista receio em relação ao potencial político ou subversivo wuxia."

Chang também acredita que a literatura dos "cavaleiros errantes" pode ajudar a produzir uma "narrativa chinesa" global. "As novelas wuxia são um fragmento da herança cultural chinesa. Um patrimônio que, até por fornecer outra visão de mundo, menos materialista, pode somar à civilização. O processo de apresentação, porém, deve ser natural. Eu acredito que, quando as pessoas conhecerem a cultura chinesa, irão se apaixonar. E o wuxia é uma bela porta de entrada."

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