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"Letterman: the last giant of late night" (Letterman: o último gigante da noite, em tradução livre, publicado nos EUA pela Harper e sem previsão de publicação para o Brasil) desmistifica o apresentador | Harper/Divulgação
"Letterman: the last giant of late night" (Letterman: o último gigante da noite, em tradução livre, publicado nos EUA pela Harper e sem previsão de publicação para o Brasil) desmistifica o apresentador| Foto: Harper/Divulgação

Para mim, foi a música de discagem. “Paul, podemos ouvir uma música de discagem?”, perguntaria David Letterman, e o líder da banda começaria uma melodia no teclado enquanto o apresentador discava um telefone na sua mesa e ligava para alguém: o chefe da CBS, Les Moonves, sua mãe, Dorothy, em sua cozinha em Indiana ou alguém do prédio do outro lado da rua. O quadro - podemos chamar de quadro? - durava poucos segundos, até que alguém atendesse o telefone, mas eu sorria apenas com o pedido da música. Era a natureza de Letterman reduzida a um único momento: um lampejo de formalidade no meio do absurdo que definia seu programa de comédia noturno. 

Letterman foi um gênio e um depravado da televisão. No intervalo de uma hora, ele poderia pedir a música de discagem e então comissionar a destruição de um carro jogando bolas de boliche do teatro Ed Sullivan. Havia algo remoto e inacessível sobre Letterman. Era um apresentador ágil e um resmungão de primeira classe. Um completo estranho com um dos rostos mais reconhecidos pelos EUA. 

Jason Zinoman, em sua biografia agradável e definitiva "Letterman: the last giant of late night" (Letterman: o último gigante da noite, em tradução livre, publicado nos EUA pela Harper e sem previsão de publicação para o Brasil) desmistifica o apresentador.

Espírito de porco

Colunista de comédia do jornal New York Times, Zinoman fica no limite entre crítica e reportagem e varia seu discurso entre historiador, médico e fã sem pesar demais a mão. Sua aplicada pesquisa é temperada por uma grande apreciação ao trabalho de Letterman e salteada pela catalogação de traços e comportamentos menos palatáveis do apresentador, como hipocondria, promiscuidade, depressão, espírito de porco, eventuais fases estranhas e um caso terminal de insegurança. 

Então o que faz com que Letterman seja "o último gigante" em comparação com seu rival Jay Leno? Existem duas respostas. A primeira é que Letterman é simplesmente mais engraçado. 

Escolher entre Leno e Letterman era "uma prova decisiva para saber se você é o tipo de pessoa com a qual vale a pena conversar", escreveu Zinoman em sua introdução. 

A segunda resposta tem uma natureza mais formal. O livro mapeia, passo a passo, como a carreira de 33 anos de Letterman reinventou os programas noturnos da televisão. 

"Ele criou um novo vocabulário cômico que expandiu nosso senso cultural de humor", escreve Zinoman, "e defendeu que os programas diários de auditório são uma forma de arte ambiciosa". 

O "Tonight Show" de Carson era entretenimento, mas o programa de Letterman também é arte e o livro de Zinoman é uma apreciação séria e vívida dessa arte. 

Arma cômica

A distinção entre arte e entretenimento é personificada por Merril Markoe, uma espécie de mãe da carreira de Letterman que é frequentemente esquecida. A escritora Markoe conheceu Dave em 1978 na Comedy Store, no Sunset Boulevard em Hollwood, e se tornou uma influência cômica profunda para ele (se tornou também sua namorada por alguns anos). 

Ela adorava experimentar com formatos e era menos inclinada à sátira do que a escrever e produzir uma comédia que desafiava, desorientava e saía da linha. O casal criou o "The David Letterman Show", um programa matinal ao vivo na NBC que, por mais que tenha durado apenas quatro meses, criou a base para o programa noturno que viria depois. 

Markoe foi responsável por segmentos como "Viewer Mail" (Correspondência do Espectador) e "Small Town News" (Notícias de Cidades Pequenas) e “Stupid Pet Trick” (Truques Estúpidos de Animaizinhos de Estimação). Ela fez com que o apresentador fizesse takes externos, tirando Letterman do estúdio e o colocando em situações públicas imprevisíveis. 

"Letterman era uma arma cômica poderosa", escreve Zinoman sobre a parceria. "Merril que trazia as balas". 

Batalha entre umidificador e um desumidificador de ar

“Letterman: The Last Giant of Late Night” Jason Zinoman Harper. 344 pp. US$28.99Harper/Divulgação

Nesse sentido, o livro é uma mais uma biografia sobre um conceito e sua execução do que sobre um indivíduo e sua evolução. Como deveria ser. Zinoman divide a carreira televisiva de Letterman em fases distintas, mas o livro é tanto sobre fofoca como é acadêmico. Zinoman conspira sobre as forças culturais externas que se relacionam com os programas de Letterman e marca as pessoas que o usaram como um avatar para suas próprias sensibilidades cômicas. 

E além de honrar Markoe pelo que fez, Zinoman elogia as contribuições do diretor Hal Gurnee, que trouxe um ritmo visual rápido e inconstante para o então visual parado dos programas da noite; destaca Chris Elliott, cuja volatilidade era um combustível para a eterna perplexidade de Letterman; e aponta o trabalho de roteiristas como George Meyer, criador do que foi chamado pelo próprio Letterman "a melhor ideia de todos os tempos do programa": uma batalha entre um umidificador e um desumidificador de ar. 

Como um antropólogo, Zinoman coloca Letterman em um contínuo, descrevendo — sem soar enciclopedista — como o "Tonight Show" marcou uma era e preparou o mundo para a comédia incisiva de “Os Simpsons”, Garry Shandling, Seinfeld e Tina Fey. 

Em nenhum momento, no entanto, Letterman parece o gigante do subtítulo do livro. Dois anos depois de sua aposentadoria, a grande conquista de Zinoman é mostrar Letterman como uma figura humana e seu programa como uma peregrinação cômica e irregular para, se não não a excelência cômica, ao menos a insolência cômica. O "último" do subtítulo soa porém verdadeiro: Letterman e seus companheiros foram pioneiros, e terras novas só são descobertas uma vez.

Tradução de Gisele Eberspächer
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