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Um dos lemas de Roth – nascido em Newark, estado de Nova Jersey e formado em literatura pela Universidade de Chicago – era o seguinte: “Você precisa ficar irritado para a começar a ver alguma coisa” | FREDERICK M. BROWN/AFP
Um dos lemas de Roth – nascido em Newark, estado de Nova Jersey e formado em literatura pela Universidade de Chicago – era o seguinte: “Você precisa ficar irritado para a começar a ver alguma coisa”| Foto: FREDERICK M. BROWN/AFP

Philip Roth (1933-2018) foi um dos poucos grandes escritores que nos avisou que, no mundo atual, conhecer-se a si mesmo parece ser um projeto de vida falido. Dono de uma obra importante e consistente, que emite uma intensidade quase maníaca, ele foi um americano de passado judeu que analisou com lucidez a esquizofrenia que se tornou a América. 

No final da década de 1990, muito antes de alguém imaginar que aconteceria o Terror do 11 de setembro, Roth publicou a sua chamada “trilogia americana”, composta por Pastoral Americana (1996), Casei com um Comunista (1998) e A Marca Humana (2000). Eram livros de ficção em que os pontos em comum são o narrador (e alter-ego de Roth) Nathan Zuckerman e o tema preferido da sua carreira: a capacidade do ser humano de reinventar a si mesmo, esquecendo-se do seu passado, para depois se tornar mais um joguete naquilo que parece ser a nossa existência em comum, mas é, na verdade, “o avesso da vida”. 

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Um dos lemas de Roth – nascido em Newark, estado de Nova Jersey e formado em literatura pela Universidade de Chicago – é o seguinte: “Você precisa ficar irritado para a começar a ver alguma coisa”.

Essa irritação é a força vital da sua trilogia americana, especialmente em A Marca Humana. Neste livro impecável, que se passa na época do escândalo Bill Clinton-Monica Lewinsky, Roth joga Coleman Silk, um ex-professor universitário de literatura clássica, no furacão do destino. Tudo começa com uma palavra – “spooks”. Em uma tradução literal, “spooks” significa “fantasmas”, “espectros”, figuras que tentamos sempre espantar de nossas vidas, figuras que representam algo que queremos esquecer, algo que sempre arrumam uma forma de voltar sem aviso e sem perdão. Mas, por enquanto, para Coleman Silk, esta palavra ainda não possui esses sentidos. Ela é apenas o que é – “fantasmas”. No entanto, não é por essa ótica que a Universidade de Athena, onde Silk trabalhou durante trinta anos como professor e reitor, vê os “spooks”. Durante uma aula, Silk resolve fazer a chamada de presença e nota a ausência freqüente de dois alunos nunca vistos por ele. Brinca com a classe ao fazer uma piada: “Onde estão esses fantasmas?”. 

Acontece que, nos Estados Unidos, o país da deturpação linguística, dominado pelo politicamente correto, “spooks” é também um termo pejorativo que se refere aos negros. E os dois estudantes ridicularizados por Silk eram justamente negros. O conselho da universidade abre uma sindicância contra Silk alegando racismo. Ele é afastado, pede demissão e se retira com sua mulher, Iris, para uma casa de campo na região da Nova Inglaterra. Ela morre de um derrame cerebral, o que causa a Silk um grande desgosto, alegando que a razão de toda essa desgraça foi a perseguição sofrida na universidade. Viúvo, solitário – seus quatro filhos estão vivendo em Chicago ou Nova York e não se importam com ele –, seu único amigo é o escritor Nathan Zuckerman, para quem conta, em uma noite quente de verão regada a uísque, que, aos setenta anos de idade, está tendo um caso com uma faxineira semianalfabeta, quarenta anos mais nova, chamada Faunia Farley.

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É neste fiapo de trama que Philip Roth dá os tons da sua ironia: temos aqui um professor de literatura que deveria saber qual é o significado de cada palavra, mas começa a sua tragédia por causa do uso “incorreto” de um termo; e também há o fato que ele redescobre o sexo com uma semianalfabeta, alguém que, supostamente, desconhece as nuances da linguagem. E não é só isso: o caso com Faunia Farley desperta os fantasmas do passado, pois, além de ser judeu, ele escondeu durante cinquenta anos, graças à sua tez clara de sua pele e as feições caucasianas, a sua origem negra. 

Sim, por incrível que pareça Coleman Silk, o professor racista, o professor judeu, é também negro. Seus pais eram negros, seu irmão e sua irmã eram negros. Ele era o único diferente, habitando em três mundos distintos sem saber qual deveria pertencer. Um típico exilado. Ele fará de tudo para afastar o passado e recriar a sua vida – até que a própria vida se encarregue de mostrar que o passado nunca pode ser afastado. 

A década da estupidez

A vida atacando a América de uma maneira completamente imprevisível. Este é o tema central de A Marca Humana, e Roth faz questão de situar a última parte da sua trilogia americana nos anos 1990, no meio do verão em que Bill Clinton confessou em rede nacional o seu estranho caso com a estagiária da Casa Branca, Monica Lewinsky.

O único adjetivo que se pode aplicar a esta década (e os anos seguintes), seja no Brasil, Europa ou Estados Unidos, é de “estúpido”. A estupidez atravessou cada poro dos governos, dos governantes, das universidades, da humanidade em geral, e transformou-se em uma instituição legalizada. À primeira vista, parecíamos que estávamos vendo o lado ridículo do poder, mas este era o lado que os seus donos queriam que fosse visto. Esquecemos que, depois do ridículo, sempre vem a tragédia daqueles que se tornaram, sem saberem, os órfãos da democracia. 

Nessa tragicomédia existem inúmeros sujeitos como Coleman Silk. Eles são os próprios americanos, mas não mais os americanos “puros” que conhecemos, aqueles camponeses de cara amarrada e ímpeto pragmático. É uma outra espécie de América que se apresenta no final do século XX e no início do XXI, uma América que representa a culminação de um processo de escravização moral e espiritual raramente visto na História. Esta América, especialista em paralisar consciências humanas, é a América do politicamente correto, fomentado pelos democratas radicais, e a dos imigrantes que não compreendem mais o que significa o verdadeiro sentido do american way of life. 

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Os Estados Unidos se mantêm à custa do trabalho dos imigrantes, e ambos se agradecem mutualmente, num contrato social que daria orgulho a Jean-Jacques Rousseau. O Estado-Leviatã dá a garantia de uma vida segura, regrada, baseada no lema do “senso comum” (leia-se: limitação intelectual) em troca de uma letargia incomum, uma boçalidade que chega às raias da loucura.

É o pacto faustiano em versão burocrática e o resultado é o mesmo – a danação eterna.

O imigrante que quer vencer na América só tem uma opção: integrar-se à cultura que o acolheu e deixar suas raízes serem trituradas pouco a pouco até se tornar algo “exótico” e capaz de ser importado para o exterior. Para isso, ele deve criar outra vida, outra memória, outro passado e outra alma, dividida entre o Sul que deve ser esquecido e o Norte de um futuro mais promissor. 

Este é o motivo do apelido dos Estados Unidos ser “a terra das oportunidades” – a capacidade do americano (e a do cidadão estrangeiro que deseja ser um americano) de recriar constantemente o seu passado. Mas, da mesma forma que Coleman Silk e os milhares de negros, indianos, latinos e europeus que entraram nesta bizarra lógica de sobrevivência, a vida ataca todos eles indistintamente e sem nenhum respeito pelo o que é o novo e pelo o que é antigo.

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“O passado nunca morreu, ele sequer é passado”, para citar a frase batida de William Faulkner (contudo, eis a alegria dos clichês: são sempre exatos e precisos). Sua intensidade e feitiço de interferir no presente para atingir o futuro é um dos mistérios que rondam o ser humano. Compreender o nosso passado é compreender a vida e a consciência que cada um tem dela e de si mesmo. Ao eliminar isso, a vida é mais um detalhe entre tantos, sem nenhuma individualidade, sem nenhuma capacidade de transcendência. No anseio de impedir que seja um banido nos Estados Unidos, o imigrante se torna algo pior que um desterrado ou um exilado – ele é um banido da própria vida. 

A era do Ressentimento

Além do problema de ser um estrangeiro, existe o dilema do “politicamente correto”. Já está mais do que provado que os militantes que defendem esse tipo de raciocínio são um grupo de ressentidos e que amam qualquer pessoa que finja ser uma vítima. Em uma nação onde ser uma vítima é uma obrigação patriótica, é óbvio que o politicamente correto seria a maior sensação. O detalhe é que isto já contaminou toda a cultura ocidental, principalmente nos dias que vivemos. 

As diretrizes básicas do politicamente correto são três: (1) O Louvor às Minorias (Ex: o bom é ser deficiente ou negro. Uma pessoa sem nenhum problema físico ou com uma tez mais clara é o grande estorvo); (2) Usa a tal da liberdade de expressão como se fosse uma nova mania e, em geral, serve somente para aqueles que concordam com suas regras de convivência. Quem não aceita isso é tratado como inimigo (e este tipo de atitude sempre terá a defesa e a proteção de intelectuais refinados e respeitados nas universidades); e (3) Tendo sequestrado a liberdade de expressão como um instrumento de poder, usam-na também para manipular as palavras com uma sutileza diabólica, completando assim o triunvirato da dominação de consciências antevista por Antonio Gramsci e a Escola de Frankfurt, implacavelmente lógica: a História, a memória e a linguagem. 

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O exemplo concreto das consequências dessas diretrizes, mesmo que seja no terreno da ficção, é o do professor Coleman Silk criado por Philip Roth, a representação perfeita de que a América se transformou em um lugar de neuróticos e esquizofrênicos que mal sabem que estão doentes (um costume entre os estúpidos, como já sabemos).

Ao dizer “spooks” com o sentido de “fantasmas” e sem nenhuma intenção de ofender a raça negra (e, pior, sem saber que os estudantes eram, de fato, negros), o absurdo da correção política levou toda a sua pacata vida para o pior sentido do absurdo, literalmente. E a crueldade de Roth, ao colocar este absurdo nas mãos de um negro judeu que tenta negar a si mesmo que é um negro, está no retrato de quanto uma obra de arte capta o dilaceramento de uma cultura desgastada com a precisão de um entomologista. 

Paixões e vícios

Alguns anos antes de A Marca Humana, Roth já tinha dado a resposta necesária ao próprio Coleman Silk, quando escreveu o livro que é considerado sua magnum opus – O Teatro de Sabbath (1995). O Sabbath do título é, no caso, o titereiro Mickey Sabbath, um devasso que não hesita possuir a sua amante no cemitério, apalpar enfermeiras em asilos para dementes, mostrar a sua “seta do desejo” para a esposa do seu melhor amigo, e não está nem aí em mexer nas peças íntimas da filha deste mesmo amigo, apesar de ela ter menos de dezoito anos. 

O livro, em si, é um triunfo de estilo e narrativa que exibe Roth no ápice dos seus poderes literários. Mas o que instiga o leitor é a atitude de Sabbath diante do mundo, apesar de todas as tragédias que viveu (a morte do irmão, a instabilidade da sua própria vida, o trágico fim da amante Drenka, um vulcão sexual fulminado por um câncer). Ele pode ser aquilo que nossos pais chamariam de “um devasso”, um ser absolutamente incapaz de se controlar em suas paixões e em seus vícios.

Contudo, talvez justamente por isso, consegue compreender melhor do que ninguém a maravilha e o espanto diante da própria vida – e, diante da morte e do ódio que consome seu próprio coração, encontrar um sentido verdadeiro para a sua existência. 

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Ou seja, é justamente a sua permissividade que lhe dá uma noção mais complexa do que é a vida em sua ambiguidade. Sabbath parece ser um ser imoral, mas tem um código de honra que respeita certas conveniências de uma humanidade que não se esfacelou por completo e que ainda não despreza a virtude do risco. Ele aceita a incerteza como seu norte, ao contrário de Coleman Silk. E quando percebe que essa mesma atitude o levou a nada, e que a única coisa que lhe sobrou foi o encontro com sua própria finitude, é então que acontece o milagre: o ódio pelo que aconteceu no seu passado se transforma no ímpeto central para continuar a viver. 

Despedidas

Este confronto com a finitude, segundo Philip Roth, é plenamente desenvolvido em Fantasma Sai de Cena (2007), o último romance da saga autobiográfica de Nathan Zuckerman. Aparentemente, não se trata de um livro tão poderoso quanto, por exemplo, O Animal Agonizante e Homem Comum, que também lidavam com as agruras da “indesejada”, e não chega a ter a grandeza de O Teatro de Sabbath. Contudo, como já foi dito, isto é apenas uma aparência, pois é uma das obras mais sombrias e mais profundas que um escritor norte-americano já escreveu sobre a relação entre a angústia da permanência e a certeza da morte.

Há momentos tocantes nele – e insights inesquecíveis sobre a própria literatura, como, por exemplo, as citações a Joseph Conrad (há uma verdadeira obsessão pela novela A linha da sombra que permeia cada página) e as inúmeras reflexões sobre a precariedade humana. O que parece ser a despedida de Nathan Zuckerman, agora impotente, incontinente e sofrendo com as perdas de memória – algo cruel para quem vive das lembranças como a seiva da vida – cheira a uma despedida do próprio Roth. 

Uma despedida triste, diga-se de passagem. Há um odor amargo ao final do livro, um odor que impregna o leitor quando este percebe que tanto o personagem como Roth parecem não possuir meios para encarar a derrota da vida.

Porque a vida é isso, meus amigos, é o que parece nos dizer o bardo de Newark: uma constante travessia pela linha da sombra, se não for da juventude para a maturidade (como é o caso da obra de Conrad), sem dúvida será um dia da maturidade para o nada (talvez a moral de toda a nossa história, segundo o autor de Operação Shylock). Roth bate na tecla da finitude com uma frequência que nos deixa estonteados. Mas aí vem a pergunta: Será que a vida é só isso – derrota atrás de derrota? 

Descarrilhamento espiritual

Para Roth e Zuckerman, a resposta é positiva. Não há volta para qualquer ato, até mesmo para quem pratica a grande literatura. De nada adianta criar uma obra que será relevante e, mais, permanente – a vida pedirá um preço e este será alto demais. Para quem era conhecido como um “transgressor” no início de carreira (pelo menos, na visão estreita de quem vive intoxicado pela retórica do “politicamente incorreto”), tudo leva a crer que Philip Roth atravessou a sua última linha de sombra como alguém resignado com a decadência e o fim da humanidade. 

A única coisa que ainda mantém Roth no seu ódio pela “morte da luz” seria, talvez, impedir a perda do impulso vital que motiva a todos nós a continuar de alguma forma, em busca de uma imortalidade, seja pelas vias sexuais, seja pelas vias de transcender tudo isso por meio da arte. Neste ponto, Coleman Silk, Mickey Sabbath e Nathan Zuckerman – e seria uma ousadia aqui colocar o próprio Roth? – formam uma “comunidade” de banidos que se recusa a aceitar a interdição de qualquer espécie de desejo – mesmo quando este é obrigado a se unir com a morte para finalmente cumprir o seu intento. 

Em Fantasma Sai de Cena, isto acontece em duas cenas inusitadas. A primeira é quando Zuckerman vai ao apartamento de um típico casal de “Intelectuais, Porém Idiotas” (o termo é de Nassim Taleb), Jamie Logan e Billy Davidoff, acompanhar a apuração dos votos para a eleição à Presidência dos Estados Unidos em 2004 – na época, a disputa era entre George W. Bush (pelo Partido Republicano) e John Kerry (pelo Partido Democrata).

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Obviamente, o casal torce por Kerry e acredita que uma reeleição de Bush seria o início de um novo apocalipse. Zuckerman só está ali porque, apesar de impotente, incontinente e desmemoriado, sente uma atração sexual frustrada pela jovem Jamie, que se diz fã incondicional da sua obra literária. Tudo o que ele queria era voltar ao seu isolamento na sua cabana no interior de Nova York e esperar pela morte, mas não é o que acontece. Zuckerman decide acompanhar a vida de Jamie em todos os detalhes e, sabendo que não pode fazer nada com ela em termos físicos, sublima a relação por meio da invenção literária, criando diálogos imaginários e picantes com a moça, mas que, no fundo, revelam mais sobre a sua precariedade do que sobre o seu desejo de manter alguma espécie de virilidade. 

No momento da eleição americana, o casal democrata fica enfurecido ao saber, conforme o transcorrer da noite, que Bush será o vitorioso. Assim como aconteceu recentemente com várias pessoas do status quo em torno da vitória de Donald Trump contra Hillary Clinton, Jamie passa a entrar em um estado de negação que só comprova a “arrogância epistêmica” do pequeno mundo onde vivia.

Zuckerman apenas registra o desabafo exagerado da menina: “Ah, o mundo é tão burro! Da outra vez, parecia que tinha sido um acaso. Teve o negócio na Flórida. E a candidatura do Nader. Mas isto, agora, não dá para entender! Eu não acredito! É inacreditável! Eu vou sair agora mesmo e vou fazer um aborto. Não quero nem saber se estou grávida ou não. O negócio é abortar enquanto eles não proíbem!”. 

A revolta de Jamie é apenas uma amostra de como “a imaginação liberal” descrita por Lionel Trilling entrou em um estado de descarrilhamento espiritual que poucos conseguem compreender como uma patologia do espírito.

É certo que Roth também comunga desta mesma imaginação, mas pelo menos, neste caso, ele permite que a precariedade que domina toda a sua obra dê um toque de ceticismo ao discurso alucinado da menina. Não à toa que Zuckerman observa Jamie com a compaixão de que já viu muita coisa na vida e chegou à conclusão de que todas essas paixões extremas que a política provoca nas pessoas são absolutamente transitórias:

“Ela olhava para mim durante essa exibição de humor negro, agora sem nenhuma antipatia – olhava para mim como se olhasse para a pessoa que a estava ajudando a sair de um prédio em chamas ou de um carro acidentado, como se um observador pudesse ter algo a dizer que explicasse a catástrofe que mudou tudo. Todas as coisas que me ocorreram dizer haveriam de lhe parecer banalidades insinceras. Pensei em repetir: a gente aguenta muita coisa. Pensei em dizer: neste país, quem pensa como você acaba fracassando nove entre dez vezes. Pensei em dizer: a coisa está ruim, mas pior foi acordar de manhã depois do dia em que bombardearam Pearl Harbor. A coisa está ruim, mas pior foi acordar de manhã depois do dia em que mataram Kennedy. A coisa está ruim, mas pior foi acordar de manhã depois do dia em que mataram Martin Luther King. A coisa está ruim, mas pior foi acordar de manhã depois do dia em que mataram os estudantes na Kent State University. Pensei em dizer: todos nós passamos por isso. Mas não disse nada. Ela não queria ouvir nada, na verdade. Queria um assassinato. Queria acordar de manhã depois do dia em que matassem George Bush”. 

A noção simultânea, tanto do escritor Roth como do personagem Zuckerman, de que a política liberal não pode redimir as intimações da vida, junto com o fato de que o término do desejo implica em aceitar a nossa mortalidade, mostra que, no fim, a única coisa que nos resta é a certeza de que a vida é só realmente compreendida, infelizmente, por meio do seu avesso. Isso fica mais explícito ainda na segunda cena inusitada de Fantasma Sai de Cena, no momento em que Zuckerman sabe da morte do célebre jornalista George Plimpton, famoso por suas reportagens esportivas e por ser um homem extremamente bem relacionado no mundo intelectual nova-iorquino.

Quem lhe informa disso é Richard Kilman, um sujeito que quer entrevistá-lo para o projeto de uma biografia sobre E.I. Lonoff, o modelo que Zuckerman tinha como escritor e que sempre o influenciou. A relação entre o jovem Kilman e o decrépito Nathan não é a das melhores: o velho romancista está perturbado por causa da sua interdição do desejo por Jamie Logan (com quem ele acredita que tem um caso com Kilman) e o jovem jornalista acredita que Zuckerman oculta informações privilegiadas que tornariam o livro um sucesso de vendas.

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Este impasse só será resolvido, de certa forma, no relato de Kilman sobre como foi o funeral de Plimpton, onde testemunhou pessoalmente a chegada da elite intelectual do país para homenagear o falecido. Enquanto escuta o que rapaz tem a lhe dizer sobre o mórbido evento, Zuckerman passa a dividir as pessoas – em especial, aquelas preocupadas em criar uma obra artística ou intelectual – em duas categorias: “ainda-não” [not yet] e “já-era” [has been].

Quem faz parte da primeira divisão seria as que ainda não foram destruídas pela avalanche da mudança e da impermanência, mas podem ser vítimas disso a qualquer momento, se não perceberem a futilidade de sua empreitada; e as da segunda divisão seriam as que já foram consumidas pelo fluxo do tempo, independentemente da idade em que se encontram, e estão em decomposição a olhos vistos, à espera apenas do enterro definitivo e sem aviso. Qualquer coisa que escrevam ou produzam torna-se completamente irrelevante. 

Ao ouvir a fala poderosa de Kilman e ao relembrar as pessoas que foram importantes para a sua própria biografia (como o polêmico escritor Norman Mailer e Amy Belette, paixão de adolescência, agora em estágio terminal, também amante de Lonoff), Zuckerman chega à conclusão de que ele mesmo se tornou um fantasma, um espectro, o “spook” que voltou para assombrar o passado de Coleman Silk e irritar ainda mais o ódio que Mickey Sabbath tinha pela condição humana, um “já-era” que deve sumir de cena imediatamente – para assim dar espaço a quem quer se arriscar a ser um “ainda-não”: 

“[...] Eu me sentia – contra a vontade – cada vez menor, quando mais exuberante era a exibição de narcismo de Kilman. Mailer não está mais procurando briga e mal consegue caminhar. Amy já não é mais bonita e não goza plenamente de suas faculdades mentais. Eu já não domino por completo minhas funções mentais, minha virilidade, nem mesmo minha bexiga. George Plimpton morreu. E. I. Lonoff já não detém seu grande segredo, se é que esse segredo de fato existiu. Todos nós viramos “já-eras”, enquanto a mente acelerada de Richard Kilman acredita que o coração dele, os joelhos dele, o cérebro dele, a próstata dele, o esfíncter da bexiga dele, tudo que é dele é indestrutível, e que ele, e mais ninguém, não está à mercê de suas células. Acreditar nisso não é nada difícil para alguém de vinte e oito anos, principalmente se sabe que a glória acena para ele. Pessoas assim não são “já-eras”, perdendo suas faculdades, o controle de tudo, vergonhosamente não mais donas de si próprias, marcadas pela privação e que sofrem os efeitos da rebelião orgânica na qual o corpo se levanta contra o idoso; eles são “ainda-nãos”, gente que nem imagina que as coisas podem degringolar num piscar de olhos”. 

No final do livro, Roth faz Zuckerman desaparecer completamente, como se fosse um coadjuvante de uma vida maior do que a sua própria e minúscula existência – levando-o, ao mesmo tempo, a ter uma lição sobre a “arrogância epistêmica” inerente a todos nós, a plena consciência de que qualquer obra só realmente valerá a pena se permanecer na erosão do tempo; se, e somente se, tiver a noção aguda de que se equilibra no espaço obscuro que existe entre o “ainda-não” e o “já-era”. Podemos passar de um para o outro em um estalar de dedos – e sem nenhum aviso.

Esta precariedade da relevância intelectual reflete sobretudo a impermanência e a incerteza que nos rodeia – e o que Philip Roth fez em seus romances foi mostrar que a única solução possível, se existe alguma, é o artista abandonar o palco do mundo e finalmente partir rumo ao território desconhecido do qual ninguém ousou voltar. 

Martim Vasques da Cunha é autor dos livros Crise e Utopia – O Dilema de Thomas More (Vide Editorial, 2012) e A Poeira da Glória – Uma (inesperada) história da literatura brasileira (Record, 2015); pós-doutorando pela FGV-EAESP.

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