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Leila Guerriero: “O jornalismo literário é um ofício modesto, feito por seres suficientemente humildes para saber que nunca poderão entender o mundo, suficientemente teimosos para insistir em tentá-lo e suficientemente arrogantes para achar que essas tentativas interessarão a todos.” | Diego Sampere/Divulgação
Leila Guerriero: “O jornalismo literário é um ofício modesto, feito por seres suficientemente humildes para saber que nunca poderão entender o mundo, suficientemente teimosos para insistir em tentá-lo e suficientemente arrogantes para achar que essas tentativas interessarão a todos.”| Foto: Diego Sampere/Divulgação

“O jornalismo literário é um ofício modesto, feito por seres suficientemente humildes para saber que nunca poderão entender o mundo, suficientemente teimosos para insistir em tentá-lo e suficientemente arrogantes para achar que essas tentativas interessarão a todos”. A frase foi lida por Leila Guerriero durante um seminário na Espanha em 2010. No ano seguinte, no México, ela defendia que “a diferença entre um texto anódino e um texto superior reside na capacidade do jornalista de entender quando é o momento de abrir o quadro e focar, além do piano, as meias do pianista”. Anos antes, em um festival na Colômbia, Leila dizia que “um perfil é como um iceberg: a parte de cima flutua graças a que permanece submersa”. Em 2013, no jornal chileno “El Mercurio”, refletia: “a pergunta não é se o jornalismo vai mudar, mas se vamos deixar que isso mude quem somos”.

Esses textos circularam em muitos veículos pela América Latina e foram compilados no livro “Zona de Obras”, mas permanecem inéditos no Brasil. Nos países hispano-americanos, Leila Guerriero é uma espécie de pop star do jornalismo literário — com direito a contas nas redes sociais mantidas por seus fãs —, mas em português seu trabalho ainda é pouco difundido. Algo que talvez possa começar a mudar na semana que vem, quando ela participará da Festa Literária Internacional de Paraty, no Rio de Janeiro.

“[Para jornalistas:] Sejam simples, mas não tentem ser inocentes. Passem pelas histórias sem lhes causar dano e sem se causar dano. Fiquem até o final nos velórios. Fotografem o morto. Resistam ao desejo de esquecer. Sejam invisíveis: escutem o que as pessoas têm a dizer e não interrompam. Diante de uma xícara de chá ou de um copo d’água, sintam o engasgado desconforto do silêncio.”

Leila Guerriero jornalista argentina

Nascida em Junín, noroeste da província de Buenos Aires, Leila Guerriero vive desde os 17 anos na capital portenha. É colunista do “El País”, editora da revista mexicana “Gatopardo”, antologista, conferencista e colaboradora de inúmeros veículos focados em crônica jornalística. Em “Los suicidas del fin del mundo”, seu primeiro livro-reportagem, investiga o suicídio de doze jovens na virada do milênio em um povoado da Patagônia. Em “Uma História Simples”, narra a jornada de um homem comum com um sonho extraordinário: tornar-se campeão de Malambo, um sapateado típico argentino, no principal festival de seu país — o livro está traduzido ao italiano, francês, inglês e português, e é o único publicado no Brasil (Bertrand, 2015). Leila ainda dirige a coleção Mirada Crónica, do selo Tusquet da Argentina, e a especialização em jornalismo literário da Fundação Tomás Eloy Martinez. Quando lhe perguntam que conselhos daria aos jovens aspirantes à profissão, é capaz de dizer coisas como: “Sejam simples, mas não tentem ser inocentes. Passem pelas histórias sem lhes causar dano e sem se causar dano. Fiquem até o final nos velórios. Fotografem o morto. Resistam ao desejo de esquecer. Sejam invisíveis: escutem o que as pessoas têm a dizer e não interrompam. Diante de uma xícara de chá ou de um copo d’água, sintam o engasgado desconforto do silêncio”.

“O jornalista é uma espécie de microempresa que deve gerar seus próprios mecanismos de financiamento. Porque, de tudo o que ele faz (assinar colunas, dar oficinas e conferências, etc.), o que menos lhe dá dinheiro é o jornalismo em si.”

Leila Guerriero jornalista argentina

Apesar de ser uma das repórteres mais experientes da região, Leila nunca estudou jornalismo. Aprendeu o ofício por acaso e no muque. Em 1991, enviou um conto à redação do jornal “Página 12” sem nem conhecer o editor, Jorge Lanata, que não só o publicou na contracapa como lhe encomendou sua primeira matéria: um perfil sobre o caos no trânsito de Buenos Aires. Teria um mês e 30 mil caracteres para desenvolver o texto (para se ter uma ideia, este tem cerca de 12 mil). “Em dez minutos o editor me ensinou como fazer jornalismo e me deu um conselho: “vá lá e se defenda como puder. Se algumas portas não se abrirem, derrube-as com um pontapé”.

Nesta entrevista — concedida com exclusividade à Gazeta do Povo em um café da Avenida Corrientes, em Buenos Aires —, ela comenta o momento atual da produção jornalística de maior fôlego na América Latina, fala de “Uma história simples” e da sua participação no principal evento literário brasileiro, em que vai dialogar com o francês Patrick Deville sobre os limites da ficção e da não ficção, no próximo sábado (29).

Em “Zona de Obras” você diz que “não acredita em textos interessados no quê mas desentendidos do como”. Porém, escrever a partir do “como” requer mais tempo, espaço, dinheiro. Seria um jornalismo utópico?

Eu não poderia acreditar nisso e estar, neste momento, com os cotovelos apoiados em um exemplar da revista “Piauí”. Vejo cada vez mais pessoas se dedicando a ele, as oficinas que dou vivem transbordando de gente e há veículos extraordinários — por exemplo, a revista “Anfíbia” na Argentina, a “Etiqueta Negra” no Peru, a “Gatopardo” no México, “El Malpensante” na Colômbia — interessados em publicar peças narrativas que explicam situações muito complexas, a partir de um lugar menos reducionista que o jornalismo tradicional, urgente. Os grandes jornais apostam pouco para que isso seja feito em suas próprias redações, porque têm de dar conta da notícia factual, da conjuntura. Então, esse tipo de jornalismo costuma estar nas mãos dos freelancers, que se autofinanciam em uma roda de trabalhos onde uma matéria paga a outra. Uma vez que você armou essa roda é mais fácil. O jornalista é uma espécie de microempresa que deve gerar seus próprios mecanismos de financiamento. Porque, de tudo o que ele faz (assinar colunas, dar oficinas e conferências, etc.), o que menos lhe dá dinheiro é o jornalismo em si. Digo, na América Latina, porque nos EUA é outra história. A “New Yorker” ainda pode pagar alguns milhares de dólares para você preparar uma história durante quatro, cinco meses. Então eu não acho que seja utopia. Só me preocupa e entristece que o espaço dedicado a essas reportagens nos suplementos de domingo seja tão pequeno, porque seria um ótimo lugar para isso.

Como você se organiza para escrever uma reportagem? Existe um “método Leila Guerriero”?

Isso varia, mas nunca começo a escrever se não tiver uma apuração prévia. E nunca vou ao território sem saber nada sobre ele ou sobre quem vou entrevistar. Uma vez conseguido este acesso, tento permanecer ali o tempo que julgo necessário para contar aquela história. Algumas demoram, porque as pessoas são mais complexas ou as realidades são mais inabarcáveis. Só vou ao texto depois desse trabalho de investigação. Senão, seria como começar a construir um edifício pelo teto. Porque não gosto da ideia de escrever para confirmar uma ideia pré-concebida. As pessoas e os assuntos sempre podem nos surpreender.

Você estreou no jornal com um conto de ficção, mas hoje é reconhecida pelo seu trabalho de não ficção. Para além do acordo tácito que existe entre o jornalista e o leitor, existem ferramentas que diferenciem um texto do outro?

É uma pergunta difícil. Eu preciso saber qual é o pacto que estabeleço com o autor do texto, se é um romance ou uma reportagem. Mas, na prática, há contos super-realistas e matérias que são obras literárias. Um leitor treinado pode saber diferenciar, mas eu não saberia dizer como, já que tanto um quanto o outro devem manter a verossimilhança. Às vezes histórias reais são até menos verossímeis que as inventadas.

“Uma história simples” tem uma construção dramática que parece corroborar a ideia do norte-americano Tom Wolfe, de que a unidade fundamental de uma reportagem literária não é o dado, mas a cena. Confesso que chorei em algumas partes.

A história do Rodolfo González Alcántara é particular porque ele é uma pessoa absolutamente normal em sua vida cotidiana, mas um animal quando sobe no palco. É como ver Antonio Gades dançar flamenco ou escutar pela primeira vez o Chico Buarque cantar ao vivo. Eu não chorei quando escrevi o livro, mas o tempo todo convoquei o estado de emoção de quando vi o Rodolfo dançar. Fui olhar meu caderno e tinha palavras soltas que eu fui anotando automaticamente: terra, céu, noite, tempestade, sangue. Depois tudo isso foi coagulando. Eu tinha gravado os gritos das pessoas, o sapateado das botas dos dançarinos, e saía para correr em Buenos Aires com esses sons no fone de ouvido. Se você tem que descrever algo quando já se passaram três anos, precisa convocar esse sentimento para produzir um efeito. Às vezes uma descrição não passa por dizer: “Rodolfo levanta a perna e faz uma mudança à esquerda”, mas por fazer essa emoção viajar em uma espécie de cápsula de tempo até fazê-la estalar na página do livro e salpicar o leitor.

Você diz que “para ser jornalista é preciso ser invisível”, mas narra esse livro em primeira pessoa. Por quê?

Uso a primeira pessoa em poucas ocasiões: em crônicas de viagem, porque já não somos viajantes do século 19 descobrindo uma cidade nova, todo mundo sabe onde ela fica e como é, então o que se narra não é o itinerário, mas uma experiência. Nas minhas colunas no “El País”, porque são textos de opinião e acho importante dizer que é algo pessoal, que o resto do universo pode opinar outra coisa. E também uso a primeira pessoa quando sou o estrangeiro de uma história que não entendo e preciso narrá-la para entender. Eu não entendia como uma pessoa podia lutar para ganhar o maior prêmio da sua vida que, ao mesmo tempo, significava o nascimento de sua aniquilação [o vencedor do festival de Malambo de Laborde não pode nunca mais competir]. É também um livro sobre as misérias do jornalismo. Você quer que tudo saia mal para o personagem, para que tudo saia bem para você, como cronista, e isso é muito miserável. Mas eu achava enriquecedor mostrar como um jornalista acostumado a tratar de temas marginais, sórdidos e conflituosos, como é o meu caso, pode contar a história de um homem bom que vai atrás de um sonho louco.

Quando se fala em jornalismo literário é comum citarmos obras como “A sangue frio”, de Truman Capote, “Fama e Anonimato”, de Gay Talese, “Hiroshima”, de John Hersey. Que autores hispano-americanos você indicaria aos brasileiros?

Nos últimos anos houve uma grande revolução no jornalismo literário latino-americano e as novas gerações mudaram completamente suas referências. Hoje, um argentino ou um chileno não vão nomear Gay Talese, e sim Martín Caparros ou Juan Villoro. Alguns livros para mim são bíblias: “La guerra moderna”, “Larga distancia”, “El interior”, “A fome”. Não se pode ser jornalista literário, na língua que for, sem ter lido os livros do Martín Caparrós. Ou “Palmeras de la brisa rápida”, de Juan Villoro. Ou “La Habana en un espejo”, de Alma Guillermoprieto. E também “Los otros”, de Josefina Licitra, “El oro y la oscuridad”, de Alberto Salcedo Ramos, os textos dos peruanos Daniel Titinger e Gabriela Wiener.

Você citou Martín Caparrós e me lembrei desta frase dele: “Sempre pensei que ser cronista era uma forma de estar à margem” [em espanhol, crônica é sinônimo de jornalismo literário].

Acho que está em um texto chamado “Contra los cronistas”, que reivindica o lugar marginal do jornalista literário, como alguém que conta o que não está no centro, e que chega tarde para contar. Martín estava indignado com estes jornalistas que batem no peito e dizem: sou cronista. Na verdade o trabalho de um cronista é muito modesto. Um cronista nunca vai ser convidado para o programa da Mirtha Legrand [espécie de Hebe Camargo argentina].

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