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Na administração gaúcha do governador José Ivo Sartori, os servidores enfrentam instabilidade desde o início do segundo semestre de 2015 | Luiz Chaves/Palácio Piratini
Na administração gaúcha do governador José Ivo Sartori, os servidores enfrentam instabilidade desde o início do segundo semestre de 2015| Foto: Luiz Chaves/Palácio Piratini

A grave crise fiscal que se instalou no País abalou o que há de mais seguro no mercado de trabalho brasileiro: o funcionalismo público. Sem dinheiro em caixa e com uma conta que não para de crescer, os Estados têm deixado de pagar em dia o salário dos trabalhadores. Um levantamento feito pelo jornal O Estado de S. Paulo com sindicatos e associações de servidores estaduais mostra que 11 unidades da Federação atrasaram, parcelaram ou escalonaram a folha de pagamento desde o início da atual gestão.

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O problema já afeta a vida de 1,5 milhão de trabalhadores. A expectativa é de que, nos próximos meses, outros Estados engrossem essa lista.

Hoje, os casos mais dramáticos são Rio Grande do Sul e Rio de Janeiro - ambos começaram a parcelar salários no ano passado. Na administração gaúcha, os servidores enfrentam instabilidade desde o início do segundo semestre de 2015. Além do 13º salário, que só começará a ser pago em junho deste ano, o salário de março foi parcelado em nove vezes. Em abril, a medida vai se repetir. “É uma coisa maluca, porque ninguém sabe quando e nem quanto vai receber”, diz Cláudio Agostinho, presidente do Sindicato dos Servidores Públicos do Estado.

No Rio de Janeiro, onde 438 mil servidores foram afetados, o governo chegou ao ponto de abrir uma linha de crédito no banco para que os trabalhadores pudessem receber a segunda parcela do 13º salário, com juros pagos pela Fazenda. Por ora, segundo a Secretaria da Fazenda, os salários estão em dia. Mas o calendário de pagamentos foi alterado.

E o mês que vem? Como será?’, pergunta aposentada

Desde que o governo estadual do Rio anunciou que atrasaria até 12 de maio o vencimento de março dos servidores aposentados e pensionistas que ganham mais de R$ 2 mil líquidos, no último dia 12, a tensão marca o dia a dia da dentista Djaura dos Santos de Oliveira, aposentada após 34 anos de trabalho em hospital público. Após a Justiça mandar bloquear R$ 649 milhões de contas bancárias do Estado e obrigar o pagamento, na última segunda-feira, Djaura passava no banco diariamente, checando o extrato duas, três vezes ao dia. Na quinta-feira, a aposentadoria de R$ 2.430 entrou.

“Por coincidência, a fatura do cartão de crédito vencia hoje (quinta)”, disse Djaura. O débito somava R$ 5 mil. Pagar despesas gerais no cartão, como os cerca de R$ 300 mensais em remédios, foi uma estratégia para lidar com os atrasos na aposentadoria. Djaura mora com o marido, aposentado pelo INSS. Gasta pouco mais de R$ 1.000 com plano de saúde, R$ 1.200 com condomínio.

Outra saída: quitou a primeira parcela do IPVA do carro, mas atrasou a segunda e a terceira. Para aumentar a renda, passou a atender emergências, nos fins de semana, no consultório particular que mantém há cinco anos na Tijuca, zona norte do Rio.

Aos 67 anos, a rotina pesa. No dia em que falou ao jornal O Estado de S. Paulo, Djaura contou que dispensara duas consultas à tarde, após uma crise de pressão alta, controlada com medicação. Para piorar, o alívio de ver o depósito da aposentadoria na quinta-feira passa longe de acabar com a incerteza. “E o mês que vem? Como será?”

Outros Estados seguiram a mesma estratégia de mudar a data de depósito do salário, como Rio Grande do Norte e Tocantins. “Antes era dia 30, depois passou para dia 3, dia 5 e agora dia 10. Não há um calendário definido antecipadamente. Não podemos nos programar”, afirma a presidente da Associação dos Servidores Públicos do Rio Grande do Norte, Angélica Soares, lembrando que o Estado atrasou o pagamento no ano passado.

A justificativa para a mudança na data do Tocantins foi o repasse das verbas federais. O pagamento passou do 5º dia útil para o dia 12. “Não temos liquidez financeira. Dependemos do repasse do FPE (Fundo de Participação do Estado, destinado aos governos estaduais e pago pela União) no dia 10 para pagar a folha no dia 12”, afirma o secretário de administração do Estado, Geferson Barros.

Com o caixa debilitado, Minas Gerais não só atrasou o salário em dezembro como foi obrigado a parcelar os pagamentos seguintes. A Secretaria de Gestão e Planejamento do Estado atribuiu o atraso, sobretudo, à forte queda da arrecadação do ICMS em 2015.

O recuo das receitas também colocou o Amazonas em dificuldades. Há dois meses, os médicos terceirizados estão sem receber o salário. Boa parte deles formou cooperativas para prestar serviço ao Estado e depende do repasse da administração para garantir o salário.

“Temos tido problemas por causa do recuo da atividade no Estado do Amazonas”, afirma o Secretário da Fazenda do Estado, Afonso Lobo Moraes. “Nesse quadro, a nossa arrecadação teve um recuo expressivo, por isso existe essa dificuldade de manter o pagamento dos fornecedores em dia”, diz.

O fato é que, para muitos Estados, a conta não fecha mais. O resultado foi parar no contracheque dos servidores e dos trabalhadores terceirizados que prestam serviço para a administração estadual. Mesmo aqueles que ainda não foram atingidos pelos atrasos também têm prejuízos. Alguns governadores congelaram os salários e benefícios já concedidos.

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Dívida

Em meio ao caos, os Estados tentam renegociar suas dívidas com a União. Na semana passada, o Supremo Tribunal Federal decidiu suspender o julgamento sobre a mudança de juros compostos para juros simples no cálculo da dívida. A intenção da corte é de que as partes negociem entre si como ficará a questão.

A deterioração das contas estaduais teve origem na forte queda da arrecadação, sobretudo do ICMS - o principal imposto estadual -, e pela alta do endividamento. Nos últimos anos, até os Estados com baixa capacidade de tomar empréstimos foram autorizados pela União a elevar a dívida.

“A queda de arrecadação colocou os Estados numa situação dramática”, diz Raul Velloso, especialista em contas públicas. Parte da piora do quadro fiscal também é explicada pela redução dos recursos do FPE destinados aos Estados e pagos pela União.

Na avaliação do economista, o retrato das finanças estaduais também reflete decisões adotadas pelo governo federal. Em janeiro deste ano, por exemplo, a presidente Dilma Rousseff reajustou o piso salarial dos professores em 11,36%.

A medida foi tomada mesmo a contragosto dos governadores que pediam um aumento menor ou até mesmo o cancelamento do reajuste. “Os Estados não têm muita escolha. Diante do tamanho do comprometimento da receita com pessoal e serviço da dívida, não sobra nada”, diz Velloso.

Gastos com pessoal extrapolam limite

Mesmo os Estados que estão em dia com a folha de pagamento correm o risco de nos próximos meses entrar para o grupo dos inadimplentes. Um estudo feito pelo economista Raul Velloso, consultor em contas públicas, mostra que os gastos com pessoal e serviço da dívida extrapolam os limites desejáveis para manter as contas em dia.

“Um Estado deveria gastar com pessoal e dívida no máximo 65% de sua receita”, afirma Velloso. Pela Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), os Estados podem gastar até 60% da receita com pessoal. Sendo assim, restariam 5% para o serviço da dívida e 35% para outros custeios e investimento em obras e melhorias. “A LRF é quase uma letra morta, pois seu espírito é conter gastos com pessoal, o que não está acontecendo.”

De acordo com o trabalho de Velloso, 21 Estados comprometeram mais de 65% das receitas com pessoal e serviço da dívida no ano passado. Na liderança, estão Rio de Janeiro (94%); Rio Grande do Sul (91,4%); e Minas Gerais (88,4%). O resultado - que exclui apenas o Estado de Mato Grosso do Sul por falta de dados disponíveis - foi obtido com base nos Relatórios Resumidos de Execução Orçamentária e com dados informados pelos Estados.

“Se o comprometimento for acima de 85% da receita com esses dois gastos, o Estado terá margem zero para inovar e ampliar a prestação de serviços com base em recursos próprios. Ou seja, estará no limite da inadimplência”, analisa Velloso. Ele explica que, para um Estado funcionar, há um nível mínimo de gastos, como insumos de hospitais, gasolina da polícia e obras emergenciais, além das despesas com os chamados “poderes autônomos”: Judiciário, Legislativo, Defensoria e Ministério Público.

Sem manobra

A secretária da Fazenda do Estado de Goiás, Ana Carla Abrão Costa, sabe bem o que isso significa. Com um aumento de 11% da folha de pagamento no ano passado, as despesas com pessoal corroeram 76% das receitas.

“Se considerar o serviço da dívida, não sobra nada. Temos pouca margem de manobra, a não ser contar com o aumento da receita”, afirma ela. Para equacionar a falta de dinheiro, desde agosto de 2015, o Estado decidiu dividir os pagamentos dos servidores em duas datas: quem ganha até R$ 3,5 mil recebe no dia 30; acima disso, no dia 10. “Os números são feios, mas a realidade é muito pior.”

Aperto

Na lista de Raul Velloso, apenas cinco Estados ficaram abaixo do limite desejável no ano passado: Espírito Santo, Rondônia, Roraima, Amazonas e Amapá. Teoricamente, eles deveriam estar confortáveis com suas contas. No entanto, os três últimos já dão sinais de dificuldades e seguem o caminho de Estados mais problemáticos.

Roraima não pagou o salário de outubro em dia; Amazonas atrasou o pagamento de médicos terceirizados nos últimos dois meses; e Amapá começou a parcelar os salários dos servidores em março.

Na opinião do economista, a capacidade de reação dos Estados no curto prazo é mínima. O gasto com o serviço da dívida, por exemplo, é o mais rígido possível. Se o Estado não paga em dia seus compromissos com a União, diz Velloso, ela pode reter as transferências de recursos federais e até entrar na conta bancária do Estado.

“Isso mostra que um setor público como o nosso, de alto comprometimento de receita com itens muito rígidos de gastos, não pode se dar ao luxo de crescer pouco, pois isso acarreta uma crise fiscal.”

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