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Quase sempre, as instruções baixadas pela Receita Federal com propósito de regulamentar dispositivos legais concessivos de algum tipo de isenção aos contribuintes estão poluídas de casuísmos, todos em detrimento dos beneficiários. E quando isso ocorre, agride-se não só a vontade do legislador mas, principalmente, conforme a natureza do tributo, o conteúdo do próprio fato gerador que faz nascer a obrigação tributária objeto do favor fiscal.

A legislação do Imposto de Renda das pessoas físicas, por exemplo, prevê isenção dos proventos de aposentadorias ou de pensões quando o contribuinte é portador de moléstia grave, como nos casos de cegueira. Vem a regulamentação e diz que o cidadão precisa ser cego dos dois olhos, incapaz de enxergar um pingo de luz em qualquer um deles para fazer jus ao benefício. A norma legal, no entanto, elegeu apenas a palavra cegueira. Essa truculenta restrição à lei tem garantido aos escritórios de advocacia consideráveis verbas de sucumbência em demandas vitoriosas em favor de contribuintes acometidos de deficiência visual monocular.

Ganho de capital

No campo da apuração do ganho de capital na venda de imóveis, o fisco também deixa as marcas de intromissão indevida. Como se sabe, o contribuinte que vende imóveis residenciais e, no prazo de 180 dias, aplica o produto da venda na aquisição de outros imóveis residenciais, fica isento do ganho de capital. Literalmente, é isto o que diz a lei. Pode acontecer, porém, que o preço acertado seja pago em parcelas, vencendo a última após o prazo de seis meses, que é o período máximo estipulado na lei para gozo da isenção.

No vão da jaula
  • É tributável o ganho de capital na venda de imóvel residencial para construção de outro imóvel residencial. A isenção se aplica somente para aquisição, no prazo legal, de imóveis residenciais construídos ou em construção.
  • Também não se aplica a isenção do ganho de capital na venda de imóvel para a continuidade de obras, gastos com benfeitorias ou reformas em imóveis de propriedade do contribuinte.

Nesse caso, segundo as instruções do fisco, baixadas com o propósito de preencher hipotética lacuna da lei, o benefício será proporcional, uma vez que parte do pagamento foi realizado após o mencionado prazo de seis meses. A interpretação restritiva não procede. A nosso ver, sequer existe lacuna legal nessa questão. Bastaria ser comprovado, pelo alienante, que o valor restante da operação, recebido após 180 dias da assinatura do contrato de compra e venda, foi devidamente aplicado na compra de outro imóvel residencial. Em defesa desse argumento, basta ver que a lei (nº 11.196/2005) não exige que a venda seja à vista. Pede, apenas, que se aplique o seu valor integralmente na aquisição de outro imóvel residencial.

Mesmo que se admita uma lacuna na lei em questão, seu preenchimento há de respeitar o critério econômico da tributação. À luz dos princípios universais da tributação, os requisitos que embasam sacrifícios fiscais aos súditos não criam direito ao Leviatã para valer-se de supostas lacunas jurídicas com o propósito de penalizar os destinatários de um benefício. Essa tarefa é do legislador.

Nas palavras do aclamado professor Heinrich Beisse, da Universidade Técnica de Munique, “o pressuposto tributário da lei desempenha uma função de garantia no interesse da segurança jurídica. Com esta é realmente compatível reconhecer e preencher lacunas em favor do contribuinte, com efeito, pois, de exonerá-lo da tributação.”

No caso em comento, portanto, mais adequado e justo seria o fisco preencher a lacuna da Lei 11.196/2005, se é que de fato ela existe, com um ato normativo que considerasse, excepcionalmente, válida, para os fins da isenção total do ganho de capital, a aplicação na compra de imóvel residencial, pelo alienante, de parcelas recebidas após o prazo de 180 dias. Em última análise, seria uma interpretação consentânea com o espírito da lei que concedeu o favor fiscal.

Note-se, por fim, que essa “cegueira” arrecadatória, essa teimosia de criar pressupostos tributários em colisão com os princípios da tipificação tributária, pode mesmo gerar efeitos opostos e incentivar práticas não convencionais na área da elisão fiscal. Por exemplo, o vendedor de um imóvel que receberá o preço ajustado em parcelas, vencendo a última no sétimo mês, não está proibido de “emprestar”, no sexto mês, dinheiro suficiente ao comprador para quitação no prazo de aquisição de imóvel com o produto total da venda.

Quando o fisco não respeita a real dimensão de um fato econômico, para os fins da capacidade contributiva ou da justiça fiscal, e despreza a vontade transparente dos contribuintes, dá margem à legítima defesa. Eis um caso típico!

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