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Separados por algumas décadas, o View-Master clássico e a releitura moderna para realidade virtual e smartphones | View-MasterDivulgação
Separados por algumas décadas, o View-Master clássico e a releitura moderna para realidade virtual e smartphones| Foto: View-MasterDivulgação

Segundo o crítico literário Frederic Jameson, não é preciso que alguém viva em determinado período histórico para poder usufruir da cultura a ele associada – tanto em relação aos valores quanto aos preceitos estéticos. Jameson deu ao sentimento que motiva essa busca, particularmente expressiva nas últimas décadas, o nome de “nostalgia pós-moderna”.

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Em suma, esse é o desejo que nos faz buscar calças “boca de sino”, óculos de abas largas, automóveis clássicos, máquinas fotográficas analógicas e restaurantes com estilo e pratos da década de 1950. Consequentemente, essa busca acaba por fomentar todo um nicho de mercado ocupado por “agentes de viagem temporal” – interessados em leva-lo àquele período idealizado por somas variadas de dinheiro. 

Embora as buscas em sebos e antiquários não sejam nem de longe algo novo, o que se viu ao longo dos últimos anos foi a ascendência de uma indústria focada em combinar necessidades atuais a estilos de tempos idos. Dessa forma, há linhas de geladeiras que lembram “a casa da avó”, mas com funcionalidades modernas; motocicletas saídas diretamente de filmes dos anos 1960, mas com injeção eletrônica e computador de bordo; telefones que parecem ser parte do mobiliário de algum filme noir da metade do século, mas que comportam identificador de chamada e se conectam ao iPhone.

SmegDivulgação

“A utilização de referências ao passado é (...) a afirmação de que o sujeito resguarda valores relacionados à sua história, resgatando esses valores por meio da sua memória e da memória coletiva”, argumentam os pesquisadores Lisete Barlach e Lucas Pereira dos Santos à Revista de Administração e Inovação, publicada pela Universidade de São Paulo. 

Passado atualizado 

Entretanto, seria apressado imaginar a cultura atual do “vintage” (termo originalmente aplicado a vinhos de safras específicas) como a construção cenográfica de uma novela de época. Conforme destaca o designer de produtos Guido Dezordi, as releituras oferecidas pela indústria atual são, logo de saída, submetidas às funcionalidades e exigências ergonômicas do público de hoje. “Na maioria das interferências, tanto em produto quanto em gráfico, as referências vintage já sofrem uma adaptação aos tempos atuais”, diz Dezordi. “Os materiais podem imitar os existentes na época, mas já incorporam as tecnologias e modelos de fabricação atual.” 

Para o designer, a busca por itens retrô é também uma resposta do público a certa homogeneização decorrente da precisão das linhas de produção atuais – com reproduções digitais e automatizadas. “O desafio na produção do retrô é reproduzir essa variação aleatória [entre os produtos] que existia antigamente”, explica. São produtos novos, mas que muitas vezes mantêm sob a carcaça o que há de mais moderno em funcionalidade e eficiência. 

Um bom exemplo poderiam ser as linhas de eletrodomésticos vintage mantidas por várias marcas. A italiana Smeg, por exemplo, oferece modelos que congregam estética da primeira metade do século passado a motores altamente econômicos e funcionalidade frost-free (que evita o acúmulo de gelo no interior do freezer).

Já a japonesa Doshisha apareceu recentemente um modelo de TV inspirado nos anos 1960. Com entrada HDMI e tela de LCD, o espaço normalmente destinado ao tubo dos modelos antigos ganhou outro destino, tornando-se um prático guardador de filmes em DVD ou Blu-ray. 

DoshishaDivulgação

Mas as tendências parecem perfeitamente inclinadas a fazer vista grossa à heterogeneidade desses produtos. Como colocam os já referidos pesquisadores, “a moda não tem a preocupação de contar a história de forma fiel; essa busca pela representação do passado participa mais do imaginário, da possibilidade de apenas rememorar, sem precisamente ser a realidade vivida em outros tempos”. 

Em busca do familiar

Pode-se dizer, portanto, que a estratégia da indústria retrô contemporânea busca oferecer o melhor de dois mundos. Enquanto entrega tecnologias atuais e toda a comodidade moderna oculta no interior dos produtos, garante maior apelo junto ao consumindo revestindo-os de familiaridade “As pessoas se sentem confortáveis com formas e padrões conhecidos”, diz Dezordi. 

Para o designer, trata-se de retomar épocas consideradas mais seguras – mais aconchegantes – a fim de atender ao imaginário do público. “Quem nunca ouviu a frase ‘já não se faz mais como antigamente’? Esse movimento está ligado exatamente a essa vontade de retornar a tempos mais simples e com outros valores”, ele explica. 

Retorno ao artesanal 

Mas além de remeterem a outras épocas, os produtos vintage também ganham terreno ao rememorar períodos de produção mais restrita, mais personalizada. Dessa forma, embora as funcionalidades modernas deixem claro que se trata de um produto atual, o público afeito ao retrô aceita de bom grado ser “iludido”, atendendo ao “desejo de recuperar momentos anteriores do processo produtivo”, segundo os pesquisadores da USP. 

O texto continua: “[Esses produtos] tentam evocar a sensação de unicidade que um produto artesanal possuía, remetendo a uma época em que as mercadorias eram, necessariamente, feitas com um dispêndio maior de tempo e trabalho, o que subentende um cuidado e personalização na produção.”

Uma cultura de massa disfarçada de personalização, portanto? Dezordi discorda. “Não creio em uma massificação de um único estilo, muito pelo contrário. Acho que deve ocorrer uma pulverização de tendências daqui para frente”, diz o designer, referindo-se ao cultivo de tendências distintas em uma mesma época – dispersas em nichos possibilitados pela interconexão atual. “É claro que algumas manifestações vão parecer mais homogêneas”, ele conclui. 

Um estilo para chamar de nosso

O  retorno de tendências de décadas passadas faz crer, em certa medida, na falta de um traço distintivo ao período atual – representado, antes, por uma colcha de retalhos com identidade difícil de divisar. “É uma grande mistura”, admite Dezordi. “Exatamente essa pulverização torna difícil distinguirmos um estilo dos nossos tempos, pois ele não existe.”

Não obstante, seria apressado afirmar que o resgate de épocas anteriores possa prejudicar os esforços criativos da atualidade. Talvez seja possível enxergar nos frankensteins modernos o embrião de uma identidade em formação – conforme fitas cassete se combinam com pendrives e visualizadores de fotografias viram aparato de imersão 3D. “Esses movimentos podem levar a criações muito originais, e o que for relevante e de qualidade vai permanecer.” Resta esperar – e apreciar –, portanto.

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