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Carro estacionado com adesivo da Uber. | SPENCER PLATT/AFP
Carro estacionado com adesivo da Uber.| Foto: SPENCER PLATT/AFP

A divulgação voluntária da Uber de um ataque sofrido há um ano que expôs dados pessoais de 57 milhões de motoristas e passageiros poderia ser tomada como um sinal de que, sob o novo comando de Dara Khosrowshahi, a empresa estaria mudando seu modo de fazer negócio. Mas, não. O maior problema da Uber ainda é sua cultura de desonestidade — algo que, fundamentalmente, a recente troca de comando não conseguiu alterar.

O ataque de outubro de 2016 não foi o único que Uber tentou ocultar sob a liderança do então CEO Travis Kalanick. No ano passado, a empresa foi multada por não ter divulgado um ataque sofrido em 2014. No caso mais recente, a empresa apenas pagou US$ 100 mil aos hackers — aparentemente, para que não usassem os dados roubados, mas na real foi uma compra de silêncio.

Existem vários exemplos de uma cultura traiçoeira na Uber, do uso do software Greyball, que dificultava a autoridades locais pedir carros da empresa, ao rastreamento clandestino de iPhones, em violação clara dos termos de serviço da Apple. Mais exemplos continuam surgindo. Semana passada, a Comissão de Serviços Públicos do Colorado, nos EUA, multou a Uber em US$ 8,9 milhões por não realizar as verificações de antecedentes adequadas e deixar que pessoas condenadas por crime e carteiras de habilitação irregulares transportarem passageiros. A questão de verificação de antecedentes é crônica: é o cerne da decisão da autoridade de transportes de Londres de suspender a licença da Uber na cidade. A Uber fingiu cumprir os requisitos, mas muitas vezes os negligenciou na prática.

Tudo isso, Khosrowshahi quer nos fazer crer, agora é coisa do passado. “Embora eu não possa apagar o passado, posso nos comprometer, em nome de todos os funcionários da Uber, que aprenderemos com os nossos erros”, escreveu ele em uma declaração de imprensa após a divulgação do ataque. Mas, quanto mudou realmente?

A admissão do hack foi resultado de uma investigação feita por um escritório de advocacia contratado pelo quadro de conselheiros da Uber, que tenta minimizar os problemas legais da empresa. Não era uma investigação interna. A Uber não poderia ter varrido seus resultados sob o tapete. Khosrowshahi publicou um novo conjunto insosso de normas culturais da empresa (“Somos obcecados pelo cliente… celebramos as diferenças… fazemos o que é certo… valorizamos ideias sobre a hierarquia”), mas no prefácio do seu texto, ele mencionou os limites de sua revisão: “Em vez de abandonar tudo, estou focado em preservar o que funciona enquanto altero rapidamente o que não”.

“O que funciona” parece incluir as batalhas legais prolongadas em que a Uber está claramente errada — por princípio, quando não necessariamente no sentido legal.

Em vez de cumprir as exigências da autoridade de transportes de Londres, a Uber continua a recorrer da decisão. O processo, de acordo com o prefeito de Londres, Sadiq Khan, poderia levar “anos”, permitindo que a Uber continue operando sem licença; Não é o tipo de comportamento responsável coberto pela nova norma cultural que diz que a Uber procura “aproveitar o poder e a escala das nossas operações globais para se conectar profundamente com as cidades, comunidades, motoristas e passageiros que atendemos todos os dias”.

Era claramente errada a contratação, pela Uber, do engenheiro Anthony Levandowski da Waymo, afiliada do Google, e pago US$ 680 milhões pela recém-criada startup de caminhões autônomos: ambas as decisões só faziam sentido se Levandowski pudesse levar seu trabalho na Waymo à Uber. A Uber acabou demitindo Levandowski em maio, e ele se recusou a testemunhar citando seus direitos da Quinta Emenda. Mas a Uber ainda está lutando com Waymo nos tribunais em vez de admitir que tentou trapacear para obter a dianteira tecnológica. A empresa não vai encerrar o caso e “fazer o que é certo”; em vez disso, ela está claramente fazendo “o que funciona”.

Em outro sinal de que a empresa não mudou muito, Khosrowshahi, como Kalanick antes dele, não admitirá que a Uber é uma empresa de transporte e não uma “plataforma” tecnológica — a questão central em um caso do Tribunal de Justiça da União Europeia trazida por um grupo espanhol de lobistas dos taxistas que não aceitou as tentativas da Uber na arbitragem regulatória.

Mas o maior movimento de negócios de Khosrowshahi até agora — o plano de comprar 24 mil carros autônomos da Volvo, avaliados em mais de US$ 1 bilhão — evidencia que a insistência da empresa em afirmar que é um marketplace baseado em apps nada mais é do que uma artimanha. Se ela detém os carros e a tecnologia necessária para operá-los, é claro que está no negócio de transporte. E, em algumas partes do mundo, a Uber já comprou carros. Em Cingapura, essa prática, combinada com o desprezo característico da empresa para as regras de segurança, levou a um carro de Uber a pegar fogo com um motorista dentro. Mas, em vez de admitir o óbvio, Khosrowshahi se contenta em continuar defendendo a alegação de que é uma “plataforma”.

A Uber, já sob o comando de Khosrowshahi, lutou até o final amargo em um caso de arbitragem de Londres, no qual dois motoristas insistiram que eles eram funcionários, e não empreiteiros independentes pegando trabalho em uma “plataforma”. Isso acabou em derrota para a Uber — mas Khosrowshahi não saiu com nenhum plano para fornecer mais proteções para motoristas no Reino Unido ou em outros lugares. Em vez disso, a Uber anunciou o acordo da Volvo, mostrando que a empresa prefere substituir os motoristas — a quem ainda chama de “parceiros” em seu material promocional — por robôs.

Essencialmente, fazer “o que funciona” também era a abordagem de Kalanick. Continuidade geralmente é boa para os negócios, mas não no caso de Uber. Honestidade e abertura totais — do modelo de negócios, do relacionamento com os “parceiros”, das origens e funções da tecnologia utilizada, dos antigos (e possivelmente novos) acobertamentos — seria dispendioso, mas também transformador e potencialmente salvador à empresa. Do jeito que está, a Uber continua a correr o risco de acabar como a Enron, uma empresa trazida abaixo pelo mesmo tipo de desonestidade que ainda corre nas veias de Uber.

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