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Quando alguém está diante de uma situação que não entende ou domina, tem medo e intui a presença de um perigo a ser exorcizado. E se fecha em tribos. É este o cenário do mundo atual com consequências questionáveis para a escola, de acordo com Roberto Romano, doutor em Filosofia pela Universidade Sorbonne de Paris e professor de Ética e Política da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). A enxurrada de informações das mídias sociais e o despreparo de professores e pais para lidarem com elas levam a um ambiente de intolerância, polarização e segregação. Em entrevista para a Gazeta do Povo, o filósofo descreve o momento atual e delineia quais seriam as rotas de fuga para evitar a barbárie.

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Por que existe o medo do pluralismo no ambiente escolar, por parte dos pais e professores?

Vivemos uma situação inédita na história da humanidade que é a simultaneidade. Até o século XX, trabalhamos sempre em termos diacrônicos. Nós fazíamos, um povo fazia, outro povo fazia, e depois de anos os próprios envolvidos iam tomar consciência e os outros também. Hoje, se você acessa o Google, vai saber o que acontece na Coreia e no Japão, imediatamente.

Há uma avalanche de informações e, ao mesmo de propaganda. E como não há mais sociedades solidamente estabelecidas em termos e princípios jurídicos, políticos, etc., com a famosa globalização, tão cantada em prosa e verso, aparece a ‘feudalização’ da sociedade, indivíduos que se reúnem em grupos, tribos, para atacar ou para se defender.

“Hoje, o professor está reagindo quase como um integrante do Facebook; quando entra na sala de aula, ou o aluno bate palmas para o que ele diz ou é um inimigo que deve ser destruído”

Não existe propriamente divergência de conhecimentos, mas pura inimizade ideológica. A escola ou o professor assume posturas de ordem ideológico-política quando veicula slogans, não ensina o profundo do conhecimento. Por exemplo, na linguagem politicamente correta, no descrever situações, muitas vezes você tem estereótipos e aquilo é imposto aos alunos.

E os pais, que muitas vezes não têm uma cultura profunda, mas a rama, baseada ‘no que ouviu dizer’, agem quase que de maneira instintiva, sem refletir, sem procurar as razões. Se uma pessoa não tem condição de comparar, de examinar, de questionar na raiz, evidentemente vai exorcizar como se fosse um fantasma.

Muitas vezes, quem defende um lado não tem conhecimentos profundos sobre o assunto, e quem critica, menos ainda. Então estão discutindo em cima de fantasmas, e quando estamos no nível dos fantasmas só Freud explica.

Isso vem piorando?

O professor, digamos, à moda antiga, podia ser autoritário, mas tinha conteúdos para passar que relativizavam a sua própria opinião. Então se fosse uma pessoa de direita ou de esquerda, tinha certo compromisso com uma ideia de objetividade, não podia ir além daquilo, não era a crença dele contra a crença do aluno ou de outro colega.

(...) em determinadas plateias, sei a linha de pensamento das pessoas e faço de propósito algumas citações, “o Neoliberalismo”... e todo mundo levanta e bate palmas. Porque há slogans, as pessoas não têm conhecimento profundo, dos matizes. Saio dando risada e chorando ao mesmo tempo, é uma coisa muito triste quando não é possível sair desse nível.

Hoje, o professor está reagindo quase como um integrante do Facebook; quando entra na sala de aula, ou o aluno bate palmas para o que ele diz ou é um inimigo que deve ser destruído.

Por vezes, não tem mais o professor transmissor conhecimentos e valores, mas um indivíduo que procura feudalizar a sua escola, a sua classe e os seus alunos. O professor foi colocado em uma posição de indivíduo que tem de fazer a sua tribo. E aí a coisa piora muito.

Aí aparecem movimentos como o Escola sem Partido.

Sim, com o discurso ‘não queremos ideologia na escola, mas a nossa ideologia é de direita’.

Mas, não há um viés de esquerda em sala de aula?

A história da esquerda no Brasil está dividida entre dois momentos importantes, no momento que surge, quando propõe modificações estruturais na sociedade, e o momento que é cooptada pelo Estado, pelos partidos políticos, etc., ela se torna tanto mais fechada e inculta quanto mais ela está ligada a interesses imediatos.

Se você tinha um professor de esquerda que não tinha interesses em política, em cargos, a atitude era um pouco mais democrática. Agora, quando além da defesa das próprias ideias defende interesses materiais consideráveis – e a Lava Jato e o mensalão estão aí para provar isso –, a intolerância é institucionalizada. Quando alguém defende interesses de ordem material com tamanha virulência, evidentemente quem não pensa como ele e que também tem interesses materiais vai retrucar do mesmo modo, com intolerância.

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Quais são as consequências desse cenário?

No renascimento, apareceu uma figura que era ridícula, e foi ridicularizada até o século XX, que é a figura do pedante. O que é o pedante? É aquele lê tudo não entende nada. Ele se empanturra de informações, mas ele não processa essas informações, e daí julga os outros como inferiores, porque não leram a quantidade de livros que ele leu.

Hoje temos o pedantismo macro, que é o pedantismo da internet: uma pessoa tem todas as informações e não tem nenhuma. Existem sites maravilhosos, mas para isso é preciso ter o básico do conhecimento, como as pessoas não têm, acreditam em tudo, aquilo que leem se torna uma palavra das escrituras, e não simplesmente uma demonstração, ou uma tese científica que possa ser questionada.

E se a isso se soma o comportamento tribal, não há saída.

Há muito de subjetivismo no debate.

Quando aparece a intolerância, os argumentos são lugares-comuns da retórica. É interessante lembrar-se do Górgias [um dos diálogos de Platão], porque ele traz bem essa questão. A intolerância trabalha com a aparência, mas se recusa ir até a essência das coisas, porque isso iria prejudicar suas crenças.

E você tem muita gente que prega a tolerância, mas que não canais inclusive para se manifestar, porque a intolerância virou o pão de cada dia.

Pouco a pouco a situação tende a piorar, inclusive, porque até pouco tempo atrás, meninos e meninas da classe média já eram consumidores de droga, agora eles estão se transformando em vendedores de droga. Há uma corrosão em termos éticos muito mais importantes do que nós imaginamos.

E os debates no Brasil não são debates. Às vezes se organizam debates, por exemplo, sobre Lula. O que você vê é ou todos contra o Lula ou todos a favor de Lula. Não há a possibilidade de questionar os erros e acertos, colocar os dois lados. Ou um debate sobre a Escola sem Partido. Se há representantes dos dois lados, quase se matam e não sai resultado nenhum. É um debate de surdos: porque para entender a razão do outro é necessário estudar e estar aberto a argumentos.

Às vezes sou chamado para participar de eventos e, em determinadas plateias, sei a linha de pensamento das pessoas e faço de propósito algumas citações, “o Neoliberalismo”... e todo mundo levanta e bate palmas. Porque há slogans, as pessoas não têm conhecimento profundo, dos matizes. Saio dando risada e chorando ao mesmo tempo, é uma coisa muito triste quando não é possível sair desse nível.

No Brasil, a crise ética e de intolerância é pior?

É uma coisa muito estranha. Aqui no Brasil tem as elites que vivem em um mundo separado da vida social e uma grande massa que faz uma autofagia cotidiana. Pobre mata pobre, pobre rouba pobre, violenta, etc.

Pouco a pouco a situação tende a piorar, inclusive, porque até pouco tempo atrás, meninos e meninas da classe média já eram consumidores de droga, agora eles estão se transformando em vendedores de droga. Há uma corrosão em termos éticos muito mais importantes do que nós imaginamos.

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Como mudar esse quadro?

Acho que vamos levar um bom tempo para digerir essa simultaneidade. No renascimento, por exemplo, houve um boom cultural, e vimos ao mesmo tempo um Erasmo de Rotterdam, que pregava a tolerância, o diálogo, etc., e também um Lutero, que era a favor da intolerância.

Mas a própria prática autoritária e intolerante tem limites. Quando você segrega de tal forma um grupo, a própria sociedade tenta a encontrar uma saída de atenuação dessa situação. Porque senão é a guerra civil, a barbárie.

Mais filosofia no ensino médio ajudaria?

Não. Sabe como se faz filosofia no ensino médio? Pega um manual, enfia na cabeça das pessoas, eles decoram frases e não conseguem entender o sentido daquelas frases no conjunto do pensamento do autor. Então, formam-se papagaios.

Ao invés de pegar o manual de filosofia e fazer a criança e o rapaz a decorarem, porque não ensinar a pensar, por exemplo, por meio da poesia. Ensinar a ouvir os sons, a perceber a forma, a pensar como o poeta arquitetou aquilo, o que ele está dizendo, etc. Isso tudo ensina a pensar e forma mais para a filosofia do que os grandes manuais.

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